Este blog é uma reunião de textos exclusivamente autorais. Para conhecer mais de mim, dividir sons e sabores poéticos, musicais, cinematográficos, e tantos outros cheiros mais além dos meus, venha tomar um expresso esparramado nas almofadas fofas do meu outro blog, o Abundante-mente. Te espero lá com as velas acesas.

28 de outubro de 2009

Primeiro amor

No meio de um dia turbulento, cheio de afazeres e dores, entrou na fila do ônibus, naquele ponto final infernal. Fazia um calor escaldante, e a chuva fina molhava seus pés sempre calçados em sandálias baixas de tiras. Vivia, nesses últimos dias, com os pés úmidos e sujos de lama. Vivia imunda.
Nunca se aborreceu muito com os pingos, porque nasceu avessa à guarda chuvas - melhor deixar que a água regasse seus dias, era o que sempre pensava. Andava árida. E estéril. De uma histeria heróica, que se mantinha até em dias de paz. Que as gotas lavassem seus ânimos e limpassem seus medos - ansiava aflita, a cada nódoa na roupa.
Em pé no ônibus lotado, atravessava a cidade de ponta a ponta, todos os dias, incansável. Nunca pensou que talvez não fosse seu destino cumprir essa cor em rotina - eram brancos seus hojes. Seguia no mesmo ritmo inalterado o cronograma enfadonho a que se destinou, sem ao menos desviar o olhar. Ou os pensamentos vazios.
No meio do esmagador engarrafamento da Avenida Brasil, às sete horas da noite - horário de verão - sentiu. Afim de confundir seus sonhos, cheirou a manga suada da camisa que pendia do braço levantado, mas, assim que levantou o rosto marcado, ele veio - avassalador. Aquele cheiro inconfundível. Aquele cheiro do primeiro amor.
Fechou os olhos e permitiu que as lembranças - uma a uma - dançassem sob seus cílios, envolvidas pelo odor estonteante da juventude. Se viu formada, com uma boa casa e com as contas em dia. Com sorriso fácil e o coração tranquilo.
Puxou a corda - que gritou estridente - e abrindo espaço entre o mar de gente com seus braços enormes, alcançou o mundo. Debaixo da chuva rala gargalhava enlouquecida, e correndo - com os passos mais largos que já deu na vida - foi atrás de si mesma e se encontrou.
Ela, o seu primeiro amor.

Sylvia Araujo 

26 de outubro de 2009

Cause every little things gonna be all right

Não há nada melhor no mundo do que estar rodeado de pessoas queridas, das mais importantes. O peso do mundo diminui pela metade, e você só se dá conta disso quando o sorriso insiste em escapar pelo canto da boca - sem o mínimo decoro - e vira gargalhada desenfreada. Mal dá pra acreditar que um segundo antes tudo parecia insuportavelmente insuportável.
A melhor receita de todos os tempos e pra todos os males é: tenha bons, grandes e verdadeiros amigos!
Mesmo sem perceber, eles te carregam no colo e te fazem acreditar que tudo vai ficar bem.
Mesmo sem perceber, eles fazem tudo ficar bem.
Sylvia Araujo

Primavera

Pa-lavra a terra, faz brotar novas sementes.
Sylvia Araujo

Nome próprio

Teu corpo, palavra - identidade.
Da lâmina fria no fio do medo, um corte. Inseguro, diagonal.
Teu desejo, sentido - inadvertido.
Do veneno pungente no copo de vidro, um caco. Pontiagudo, amarelo.
Teu sufoco, entrelinha - estanque.
Do socorro represa na voz de quem cala, um lago. Profundo, perverso.
Teu ensejo, plural - inóspito.
Da terra árida no deserto longínquo, um vazio. Dilacerante, sombrio.

Do corpo inerte, nenhum desejo são pulsa. Do sufoco, apenas o ensejo de uma identidade inadvertida. Estanque. Inóspita.
Da palavra dita, um sentido qualquer-que-seja, clama. Da entrelinha sucumbe o mais plural corte. Em cacos e lagos - vazio.

Da lâmina fria diagonal, o fio do medo inseguro.
Do veneno pungente amarelo, o copo de vidro pontiagudo.
Do socorro represa perverso, a voz de quem cala profundo.
Da terra árida sombria, o deserto longínquo dilacerante.

(Sentimento é jogo de palavras com nome próprio.)

Sylvia Araujo

Amor

é o suave beijo do silêncio que me afaga os cabelos.


Sylvia Araujo

O silêncio

faz um barulho ensurdecedor.
Sylvia Araujo

Magia

Suas mãos se assemelham a cansadas cordas de aço entrelaçadas. Quase sempre imóveis, só é possível vislumbrar as palmas - queimadas pelo calor das pedras - quando se rendem ao mímico diálogo com os pássaros pretos. Gestos ventados ao ar, os dedos desenham incompreensíveis contornos pouco acima da linha do horizonte, enquanto a boca seca cala.
Ela também é alada.

Seus cabelos, derramados ombros abaixo feito cachoeira prateada, têm como preocupação apenas seguir a inconstância do vento. Por vezes se embolam com as correntes ao longe e, de liso, mimetiza em intermináveis vagas rebeldes. Eles vêm e vão, redemoinham e adormecem conforme a maré. Fios revoltos, não se distingue onde começa e termina seu corpo enquanto flutua.
Ela também é partida.

Sua pele é um conglomerado impreciso de retalhos que misturam rugas e cores aleatórias e marcadas. O corpo é delgado e frágil, e os ossos pontudos revelam por baixo do tecido duro e surrado uma silhueta friamente geométrica. Em postura triangular, mantém a espinha ereta e as pernas cruzadas - as rachadas plantas dos pés para cima. Com a cabeça voltada para o norte, tem os olhos sempre encobertos de névoa, mesmo nos tempos mais quentes, enquanto evapora.
Ela também tem segredos.

Sua vida segue sem que jamais tenha tentado transformar pura magia em meras palavras. Em seu mundo, letras são míseros rabiscos frente a imensidão gloriosa dos sentimentos que vibram. Ela não fala. Ela não escreve. Enquanto muitos a definem louca por inacessíveis e degradantes sinônimos, ela enxerga o vento e o beija.
Ela está muito além.
Sylvia Araujo

Adiante

Abriu um vinho. Tinto e seco. De shorts e meias, colocou no aparelho de som a inconfundível trilha íntima das noites vazias, enquanto o líquido encorpado suspirava - sutil - dentro da garrafa esverdeada.
Quando as primeiras notas começaram a escorregar pelos ouvidos, se enrodilhou no sofá puído de terceira mão, com as duas pernas dobradas por debaixo do corpo franzino. No mesmo canto de sempre - segurando o cachimbo amarelado e mordido, com o zelo próprio de quem se fez confidente - levou ao nariz a taça bordeaux pela metade.
Inspirou os aromas harmoniosos com a suavidade de quem está habituado a reter em si o que há de melhor nas coisas, e em um curto gole permitiu que aquela elegante maciez - rica e aveludada - inundasse a língua e envolvesse o corpo num prazer único e deliciosamente aconchegante.
Preencheu então as próximas horas com seus poucos pequenos prazeres, e se alimentou da sensação etérea de estar na melhor companhia. Sorriu um sorriso branco simplesmente por compreender, enfim, que acariciar sua própria alma era o bendito-santo-remédio pra tanto sofrimento sem laço. O nó se desfez. Pelo vinho, pelo fumo, pelo fundo do poço que desenredou em si mesmo, se fez abraço.
Nesse dia ele estava só. Mas apenas porque aprendeu a desfrutar da felicidade sublime de se perceber assim, sem ser dilacerado pela brutal e desumana solidão dos seus dias de morto.
Ele estava só.
Mas estava inteiro.
Sylvia Araujo

Viagem

As palavras partiram. Voaram pra longe pra devorar novas entonações, sem um único adeus. Elas normalmente me deixam quando têm fome - vez ou outra me escapolem.
Hoje não me tira o sono saber que foram. Nem se voltam. Ou quando chegam. Nosso amor é cativo, intimamente puro; e mesmo que pareça tão duro, é rio - desagua sempre em ritmo certo.
Por hora acordo vazia - de um vazio que não dói, afaga. Pre-encho então meus dias com frases feitas e outros excessos, que não meus. Virou rotina, neste destempero, muitas palavras estranhas se esfregarem em mim. E eu deixo. E rodopio com elas. Quando o som acaba, olho com olhos de despedida que acalenta, e sigo.
Me faz bem estar só.

Sylvia Araujo

Igualitando

Não entendo como, em pleno 2009, ainda possam existir pessoas capazes de julgar o outro pelas suas diferenças. Homossexuais, simpatizantes, negros, pardos, ateus, budistas, obesos, anoréxicos, egoístas, solidários, militantes, acomodados, portadores de necessidades especiais, atletas... são tantas diferenças, tantas singularidades - particularidades pra distribuir e vender!
Cada um é cada um, sujeito singular e multifacetado - cheio até a boca dos seus próprios senões e poréns - e não, não existe um unicozinho par idêntico nesse mundo-vasto-mundo pra contar história.
Juro que me esforço, mas não consigo administrar tanto dedo em riste que vejo por aí. Por que não se pode simplesmente respeitar (e respeitar é muitíssimo diferente de tolerar) a direção de cada atalho? Por que não se pode olhar o dentro de cada ser humano ao invés de tachá-lo, rotulá-lo, de simplesmente excluí-lo? Pra mim, é pequenez demais se achar tão grande a ponto de anular a importância da vida do outro. (grande, imenso mesmo, é aquele que absorve todas as matizes e cria a partir delas sua própria nuance)
Quer dizer então que só heterossexuais-brancos-magros-lindos-ricos e saudáveis se edificam em alegrias e tristezas? Só eles têm um coração que pulsa? Ah, pode parar, que eu vou descer é já!
Num mundo em que é preciso haver lei pra punir discriminação, pra coibir desrespeito, pra garantir direitos de cidadãos contribuintes, eu não tô afim de caminhar não. Estanquei.
É por essas, e muchas outras coisitas, que prefiro mil vezes reverenciar o submundo idílico dos sonhos que sonho. Pelo menos lá - mesmo que seja só lá - toda diversidade é.

Sylvia Araujo

Pororoca

Tenho mesmo esses repentes de virar rio sem avisar, confesso. Já tentei autocontenção e represália. Não adianta.
Quando transbordo - bote em punho - pratico rafting.
Encontrei a solução perfeita pra sempre me querer bem.

(Nada como uma pitada de aventura, quando a vida insiste em virar lago.)

Sylvia Araujo

Pra florescer

Mas que mania que os dias têm - todos os dias - de me anoitecer!

(Pra me distrair, eu pinto sonhos e planto sóis pelos atalhos e jardins afora.)

Sylvia Araujo

Ninho

Cá no meu mundo, soluço é ocre-alaranjado. Com um quê de tenro, outro de azedo, se assemelha a brisa silenciosa sobre mar revolto.
Já tristeza é macia e úmida. Mesmo com tantas nuances desnudas-carnudas, dourada se desfaz em inocente e avermelhado botão.
O lamento, esse é agridoce. Hesitante, entorpecido entre lascas de secura estéril e um bocado acetinado de miragem esmaecida, desfila na língua que insiste em se refletir sensível.

Cá no meu dentro, o sofrer se desfaz e se distrai em mim. Enquanto beija flor descansa - asas pro alto - correnteza baila descompassada e girassol sussurra letras rimadas, eu desmeço e me despeço do tempo anoitecido, para ser livre-liberta em horizonte infindo.
Desejo, então, à lânguida estrela-ardente, uma pilha de poesia soprada ao vento e um imenso monte charco-vivo de sentimento.

Cá no meu tempo, minhas asas flanam sol-a-pôr-do-sol. E no meu mundo, tão vasto e descabido mundo, tudo é beleza e estranhamento-cúmplice. Até lágrima que escapole seca, me amarela, me irradia.

Nesse meu canto - pros meus encantos! - rodopiam desembestadas palavras efêmeras-cruas. Elas sorriem embriagadas e me desmontam - dor após dor - com um frenético - e intrépido! - mi bemol intenso de armaduras nuas.

Sylvia Araujo

Tal borboleta

Daqui de dentro eu azulo - faço do cinza casulo.
E quando saio, ah, quando pairo...
é tanta cor que entontece!

Sylvia Araujo

Previsão do tempo

Forte tempestade pela manhã. Nevasca ferrenha à tarde. Geada enregelante à noite.

Enquanto o tempo não desanuviar, não saio de dentro de mim.

Sylvia Araujo

Pra levar na mochila

Pra dias nublados, um pocket sun.
Pra horas de engarrafamento, um frasco de gargalhadas.
Pra momentos tristes, duas ampolas de mel.
Pra noites estreladas, um espelho (pra que elas multipliquem).
Pra tempo frio, uma caixa de abraços mornos.
Pra usar no trabalho, um fio de criatividade.
Pra dias de chuva, dois braços abertos.
Pra encontrar os amigos, meu chocalho.
Pra viagens mais longas, um colar com um pingente enoooorme de saudade.
Pra namorar, uma dose generosa de cumplicidade.
E pra ir na esquina, um maço de cigarros, um isqueiro e as chaves de casa.

Sylvia Araujo

Inteligente, bonita e gostosa

Eu nunca tive paciência pra sessões de embelezamento. Só de pensar em passar mais de 40 minutos em um salão, já me dava calafrios. Ouvir pessoas falando sobre a novela, como se estivessem discutindo o fim trágico de um ente querido, me dava nós horrendos no estômago. E quando o tema é celebridades - cometas ou não, não há distinção - e o povo chora junto, ri junto, toma partido e entra em depressão profunda (e coletiva!) pelo galã? Tortura crudelíssima!
Sessões de corta-hidrata-pinta-escova-agoraapiastra, lixa-dábrilho-colore-esperasecar, pernainteira-virilhacavada-axila-buço-tudosempelos, lava-esfolia-cremenoturno-cremediurno... respira... praáreadosolhos-olhaoprotetor, entranaloja-olhaasararas-experimentadez-sóentramcinco! Aff! Só de escrever já cansa a beleza.
Hoje continuo achando tudo isso um pé no saco. Mas ao invés de fugir das artimanhas femininas para valorização do layout, levo um mp3, ou um livro, ou fico alheia olhando a TV e até me divirto - vejam só! - com as figuras mirabolantes que vêm e vão, e fazem do salão seu analista, seu confessionário, sua compulsão, no mínimo semanal. Tudo em prol da imagem que quero ter.
Deixei faz tempo de achar que mulher bonita é necessariamente burra, e que mulher inteligente precisa cuidar do intelecto, e pode se dar ao luxo (de vez em quando) de passar um gloss básico nos lábios.
Saí correndo do instinto de gata borralheira que sempre se fez sombra nos meus passos e fui de encontro ao amor próprio. Porque, hoje eu sei, que cuidar de si mesma, se sentir bela e atraente é maravilhoso, quando não se precisa disso para ser quem se é. Imagem é muito. É através dela que você atrai pessoas afins, que você faz amigos, que você arruma um emprego que te caia bem... mas não é tudo. Por isso, quando cuido da fachada, aproveito sempre pra dar uma olhada na casa. Só pra me certificar de que tudo vai bem com as fiações e os encanamentos, pra que não corra jamais o risco de desempalavrar de frente pro espelho.

Sylvia Araujo

Incredulidade

Ele coleciona palavras que não tem coragem de usar.
Ela usa palavras que não tem coragem de colecionar.

As palavras sorriem. Um sorriso engraçado - meio de lado.

Sylvia Araujo

Inominável

E tem coisas que, por mais que a gente queira, e se esforce - se desdobre - não consegue esquecer...

O coração dói pela ferida mal fechada.
A respiração pesa pela cicatriz não planejada.
A solução, então, é fechar as portas pra balanço
- já que o peito não assimila com jeito o sentimento sem nome;
e se entregar inerte ao sono pesado,
pra encerrar e enterrar de vez
o mesmo olhar que insiste em se fazer insone.

Sylvia Araujo

Rola, cabeça, rola...

Era dia do aniversário da filha do meu ex. E eu não queria ir até lá, apesar de ser absolutamente louca por ela, porque vai que a criatura resolve aparecer, e a minha presença causa um surto psicótico no ser? Melhor não arriscar... (Pois é, a história é longa, e além do mais não é sobre isso o post).
Saí feliz e contente com meu pequeno filhote a tiracolo pra ir até a esquina comprar cigarros. Peguei cinco reais, coloquei no bolso do short e bati a porta. Voltando, procuro as chaves pra abrir o portão. Cadê? Cadê? Cadêmeudeus??? Pânico generalizado. Eu e uma criança de cinco anos cheia de sono, na rua às 20:30h da noite de um dia de semana, trancados fora de casa. Ótimo! O celular, óoobvio, ficou em casa. E com ele, mais óoobvio ainda, a minha agenda de telefones.
Num lampejo, lembrei o telefone de quem? De quem? Da mãe da filha do meu ex. É, ela é minha amiga. Somos quase siamesas, na verdade. (Essa história então, meu bem, melhor te contar na mesa do bar, e numa sexta feira, pra poder render bastante). Ligo. A cobrar. Ela diz:
- Vem pra cá, não tem jeito.
- Tá, eu vou.
Fazer o quê? Dormir na calçada não vai rolar. Fui com o troco do cigarro, que dava exatamente o valor de uma passagem de ônibus. Nem pra bala. Cheguei, meu ex não tinha ido mas a mãe e o pai dele foram. E me olharam com uma cara de interrogação espanhola, manja? Mas caguei. Só precisava entrar em casa. Urgente! Liguei pra uns cinco chaveiros e, na mão do mais barato, morri em cinquenta reais, mais três reais de cada chave que copiei pra deixar na casa da minha-amiga-mãe-da-filha-do-meu-ex porque ela in-sis-tiu, caso eu resolvesse fazer essa gracinha de novo. A merda da chave estava do lado de dentro da porta. E ela, óoobvio, não abre por fora. Ninguém merece? Eu mereço.

Achou que acabou? Não, meu bem, todo castigo pra sequelado é pouco...

Uma semana depois... (talvez uns dias a mais ou a menos, mas isso não importa) me tranquei de novo. Há! Dessa vez sozinha. E com bolsa, celular, carteira e batom. Fui então - resignada - pra casa onde minha chave extra estaria cintilante e novinha em folha me esperando resgatá-la. Chegando, contei minha história triste de quem não perde a cabeça só-e-somente-só porque ela está grudada no corpo, etc e tal, e qual não foi minha surpresa ao ouvir, quando implorei pela chave:
-Ih! Sei onde tá não.
-Caraca, criatura, eu te avisei pra deixar em algum lugar visível, que você não pudesse soterrar com outras coisas, nem perder de vista!
-Pois é. Mas não sei onde tá não...
Calafrios. Juro.
Lá fui eu ligar pro chaveiro (o mesmo!). E morri em cinquenta reais mais uma vez. E tive que ouvir piada do filhodaputa - que podia ter me poupado desse chá quente de verdades cruas e nuas que ele me cuspiu na lata - e ainda por cima ficar com a maior cara de bunda. Porque dessa vez a chave também estava na porta. Mas do lado de fora. Ela ficou um dia in-tei-ri-nho pendurada ali, pra quem quisesse ou não quisesse ver. Nem quero pensar no que poderia ter acontecido, porque aí já é sofrer demais. Chibata. Só muita chibata mesmo.

PS: Depois desses dois dias ainda me tranquei mais umas três vezes. E isso deve ter bem menos de um ano. Tô pensando em abrir uma conta no chaveiro. Vai sair beeeem mais barato. Fato.

PS1: Resolvi escrever esse post porque hoje perdi meu cartão do banco. O de débito. O único que eu tenho. Me mato agora ou mais tarde?

Sylvia Araujo

Revolução fio a fio

Nunca na vida imaginei que cortar radicalmente os cabelos pudesse fazer tão bem pra alma: há anos carrego nos ombros a mesma cara e a mesma história cansadas de guerra. Olhava no espelho sem a menor preocupação de me enxergar, porque sempre estive ali: imutável, intacta, idêntica - todos os dias.
Já faz algum tempo que ando me esforçando por mudar de ares, por transformar meus lares; e hoje eu sei - tenho a certeza - de que o que desejo ad eternum são novas cores, novos gostos, novas paisagens, novos cheiros... quero uma irreconhecível eu-mesma pra desbravar o sem-fim de tantas outras impressões e imagens que me tocam sem parar; quero é um inconstante reflexo - naquele mesmo velho-exausto-espelho-estanque - pra encurralar meus medos e mastigar meus dias.
Parece que, junto com os muitos centímetros de madeixas, deixei o estático-estético pra trás. E que ele vá. E não volte nunca - porque palpito, da revolução de meter a lâmina nos cabelos, àquela capaz de neutralizar todos os meus excessos: do viver, do fazer, do sentir; pra me materializar minuto a minuto em uma outra - sempre viva e incansavelmente incansável - mutante sagrada de mim.

Sylvia Araujo

People are strange

Eu só queria entender as pessoas... compreender o que passa em suas cabeças e seus corações. Saber o motivo de suas atitudes, conhecer suas carências, olhar dentro de suas feridas para tentar desvendar o porquê de se machucarem tanto uns aos outros, desse jeito tão dolorido...
Na verdade, acho que nem quero mais tudo isso não... Pra ser mais que sincera, estou a ponto de desistir. É, desistir. De confiar, de abrir sorriso e peito, e de entregar meus ouros pra qualquer um que apareça na minha frente assim, de repente - não mais que de repente. Jogar a toalha mesmo, sabe?
A vontade que cresce a cada dia é a de enfiar todo mundo no mesmo saco - junto com as decepções, com os fracassos e as tristezas - e sacudir, sacudir, sacudir...
Ando cansada. Irremediavelmente desacreditada. E cada dia mais insone.

Dizem por aí que é bom ouvir os sinais que a vida nos dá - de vez em quando, que seja. E durante muitos anos me fiz de surda até em ensaio pirotécnico. Mas juro - pelo meu coração mortinho debaixo de um trem - que vou ficar "sempre alerta" daqui em diante. Porque de strange já basta eu.

Sylvia Araujo

Cara de água morna

Estava eu hoje vagueando por aí, lendo alguma coisa em algum lugar, que - obóooovio - não me lembro onde, nem o assunto, nem por que cargas d'água estava lendo aquilo, mas o fato é que registrei a expressão: cara de água morna. Sim, sim, alguém estava falando sobre alguma coisa, que outro alguém estava falando... Tô confusa, péra...
Respira, 1, 2, 3...
Again: uma pessoa estava descrevendo a reação de uma outra pessoa em relação a determinado assunto e disse que ela estaria fazendo cara de água morna ante o fato. Tcharam! E eu, como boa sinestésica que sou, a-do-rei, claro! E é engraçado isso, porque a sentença tem uma conotação pejorativa pra mim, mas depois, pensando bem, acho que não deve ser assim pra todo mundo... Porque afinal, a sensação do morno normalmente é boa, aconchegante, calmante até. O que obviamente causaria desconforto para os mortais - me embasando no senso comum - seria o gelado ou o pelando. Ou não? Mas pra mim é intrínseco que cara de água morna é aquela cara sem sensação, sem expressão, sem intenção, sabe? Como cara de paisagem, cara de samambaia, cara de lago. Tudo assim, paradinho, insosso, inodoro, indolor...
Filosofando mais um pouco (muito mais, pra ser justa) percebi - chocada! - de que o que eu quero mesmo é rebuliço... Procuro sempre o arrepio da queda livre e o sem-ar da correnteza. Boiar no remanso me causa estranheza - e enjôo - porque sempre nadei contra a maré, desde que me entendo por gente. E hoje, por causa da tal cara de água morna que alguém escreveu em algum lugar, falando de alguma situação que eu sequer sei qual foi, cheguei à brilhante conclusão de que eu definitivamente tenho problemas.
Ou crio problemas.
Ou sou o problema.
Ah, sei lá. Melhor deixar quieto!
Vai que o problema cresce... e aparece! (xô!)
Sylvia Araujo

Jaque

Estávamos Louca da Pia (essa sou eu. Não ri não; nem pede pra explicar), Louca do Sótão (você já- já vai entender), Louca da Casa (fornecedora desses apelidos tão carinhosos) e seu ilustre digníssimo (a culpa é toooooda dele!), nos divertindo como sempre, numa daquelas noites entre amigos de fé, irmãos camaradas, de papo-vai-papo-vem-traz-mais-uma-lá-jaque-você-tá-em-pé, quando horas e horas depois percebemos a sutil evaporação da criatura.
- Ué, cadê Louca do Sótão?
- Ih!
- Caraca, sumiu!
E lá começa a peregrinação. Nessas horas, parece que a menor casa do mundo é capaz de se transformar em um labirinto interminável, digno das sagas angustiantes de Harry Potter. E abre a porta do quarto da criança, que dorme que nem anjo (alguém precisa exercitar afinal a não-insônia, pelamor). Nada. E abre a porta do aposento do casal. Nada também. E passa o raio x pela sala. A bolsa tá aqui, mas cadê a meliante? E acende a luz do banheiro, e fuça tudo, até no box. Absolutamente nada. E vasculha a área in-tei-ra. Neca de pitibiriba...
Prestes a iniciar o gato-mia, resolve-se, entonces, num lampejo de sanidade (tá, tinha cerveja no meio, mas nem era pra tanto) meter a mão na maçaneta do forte da adolescente quando, como num passe de mágica, a porta se abre - num silêncio de meter medo até no mais macho dos machos...
E de lá de dentro, atrás de um sorriso deslumbrante, com a cabeça inclinada e os cabelos esvoaçantes, naquela voz felpuda que é só dela, sai:
- Oi! Tá boa?

Agora diz aí: esse ser insano merece ou não merece o apelido que lhe cabe? (Pra quem não sabe, a Louca do Sótão fica lá quietinha, até que a gente solte a coitada pra dar uma voltinha.)
Diz aí de novo: tem como não amar enlouquecidamente essa destrambelhada? (rasgação de seda básica, pra não passar o feriadão de olho roxo!)

PS.: Faz tempo que tô avisando que não tô boa... nas entrelinhas eu disse em alto e bom som: CORREEEEEEE!

Sylvia Araujo

Cá com os meus botões

Minha vida virou de cabeça pra baixo de repente, como num looping frenético daquela montanha russa que encabeça disparado o ranking das dez mais assustadoras do universo intergalático. E eu tive que aprender na marra - minuto a minuto - a caminhar de bananeira. O pior de tudo é que ando me divertindo barbaridades com essa nova visão do mundo. As coisas ficaram mais simples, como se - pés pro alto - tudo virasse do avesso e se despisse da imagem clássica (e sacal, convenhamos) de ser o que é. Ando rindo de mim mesma, como jamais fui capaz em todos esses anos de estrada! Ando me desconstruindo a cada passo trôpego e inconstante...
Cá com os meus botões, nada pior poderia ter me acontecido nesse momento. E, assustadoramente - por isso mesmo - nada melhor. Fiquei desbaratinada, confesso, quando as luzes se apagaram. Mas no negrume, me surpreendi com as novas possibilidades do tatear, desaprendi a me deixar guiar pela luz fraca do stand by e segui rumo ao deslumbrante desconhecido. Ah! E como é supremo reconhecer meus espaços sem qualquer outro sentido, senão aquele que me leva aonde quero de fato ir... Então, neste momento sublime, quase nirvanesco, sigo firme meus instintos e meu coração, com a certeza de que vou chegar lá (pode escrever), onde nada - nem ninguém! - será capaz de me ferir, porque minhas asas estarão tão fortes, mas tão fortes, que vão me guiar certeiras até a infinitude do ser muito mais. Mais ainda.

Sylvia Araujo

O Rio de janeiro continua

Male

-molência


Ziri

-guidum


Boro

-godó


Bala

-cobaco


Só no telecoteco!
(Ê, vida boa!)

Sylvia Araujo

Degradação

A criatura já virou estátua, múmia ou qualquer coisa que não se mova sem vento. Parece que brotou lá, no âmago do boteco mais imundo que já vi na vida, surgindo soberba do meio das engulhantes poças de cerveja-insone e suor-mal-cheiroso.
Com cabelos em pleno incêndio, entupidos de laquê endurecido, despenteados com todo o zelo pro alto, mas bem pro alto mesmo, ela nem pisca. Olha adiante, embora me pareça amordaçar o passado a todo instante. Ela grita sem emitir um único som.
Não sei como ou quando se aninha, nem em que condições vai embora, mas é certo de que ofusca os olhos de quem passa a qualquer hora, estupidificada que se faz por paetês, balangandãs e cintilantes afins, pleno sol à pino. Dos pés à cabeça ela reflete.
É tanta ruga, mas tanta ruga, que a maquiagem pesada faz crosta no meio dos sulcos. E o batom, nem precisava dizer, corre confuso pelos tons de vermelho: sangue, cereja, morango, chaga aberta. Isso, quando não se faz perceber camadas sobrepostas de todos eles juntos - uma cicatriz sentada na outra.
Tem sempre uma cerveja aberta, já reparei, um copo cheio e uma companhia - que nem sabe seu nome e está sempre de costas. Nem deve ter nome. Sequer ser chamada. Tampouco parece respirar, ou sorrir, ou chorar.
Toda vez que passo por sua mesa cativa, meu coração procura por ela. E ela está invariavelmente lá, implacável, em seu mundo distante. Em um mundo próprio de brilhos e sonhos.

Toda vez que passo por ela, ela vai embora comigo.
Toda vez que passo por ela, ela se deixa levar.
Pra qualquer lugar.

Sylvia Araujo

Filho

Feito brisa,
Chega morno e arrebata.
Palpitar sem freio;
Medo incontinente do porvir.
É um não saber,
Mesmo sentindo tudo
- mesmo sofrendo tudo,
mesmo amanhecendo sempre.

Quando semente,
Em meus sonhos: flores.
E agora que brota firme,
Só penso em enraizar.
Sigo em luta pela firmeza dos galhos,
Pela presteza do norte,
Pelo ocaso da sorte...

Eu o quero Mar
- meu ventre -
Bravio ou contido,
Tudo o que for de teu.

Eu o quero Vida,
Palpitante, enorme
- Imensidão azul...

Sylvia Araujo

Saindo de fino,
No fino da bossa,
Do fundo da fossa,
Do alto do morro.
Pedindo socorro,
Canela ralada,
Cabeça parada,
Futuro perdido.

Ele corre...
Canta, vibra,
Dança, escorre.
Ele morre.

Saindo da vida,
Na dor da ferida,
De-cadente partida,
Por debaixo dos panos.
Suplicando alegria,
Estampando sorriso,
Presente é presente
- Embrulhado em jornal.

Ele paira...
Sobrevoa, surge,
Imenso - urge.

Ele sangra.

Sylvia Araujo

Silêncio

Não, não fala nada. Não me espere, não me siga. Mantenha seus braços fechados a minha volta e seus olhos olhando pra dentro. Não quero que me veja assim. Apenas respire em minhas costas e sinta minha nuca. E me deixe dormir, como se estivesse segura de tudo, como se pudesse seguir - sem me virar.

Não, não diga nada. Não me empurre, não me deixe. Mantenha seu calor emanando e seus dedos enlaçados aos meus. Não quero que não me veja assim. Apenas sinta minha dor e me acalme, tudo vai ficar bem. Me olhe nos olhos e me faça acordar, como se o mundo se abrisse e eu não precisasse correr - olhando pra trás.

Me beija.

Sylvia Araujo

Camisolenta

Ando camisolenta,
arrastando as sandálias pelos dias...

Ando neblina densa;
Ando rotina dura;
Ando vazio esparso
- laço desfeito,
Gasto.
Ando, por aí, sem rumo,
desencontrando os passos.

(Ando camisolenta,
afastando os dias pelas sandálias)

Sylvia Araujo

Bom dia

Abre os olhos devagar - quase em câmera lenta - e sente os cílios se descolando, um a um, tal folha nova de papel manteiga.
(Depois que aprendeu a perceber cada mínimo sinal e movimento do corpo, levantar da cama pela manhã teria virado piada, se não tivesse se tornado, sabe lá em que momento da sua vida, um dos maiores prazeres da existência)
Olhos entreabertos ainda, é a vez de sentir o oxigênio passando pelas narinas, rodopiando no peito e voltando quente, numa baforada pausada; liberada calculadamente pela boca seca - fruto da noite agitada, como se fez rotina. Língua nos lábios, o ar se transforma escorregadio e massageia a sutil umidade - já não prende nas frestas da pele cortada pelos dias difíceis.
Estica os braços cruzados por trás da nuca e espalma as duas mãos na cabeceira rígida e gelada da cama. Com os sentidos alertas, percebe a textura e a baixa temperatura da madeira subindo dedo a dedo, até que, passando pelos pulsos, antebraços, axilas e costelas, vai parar no cóccxi. Lá, bem lá onde insistem em se esconder suas dores e seus amores...
Joga as pernas - juntas e dobradas - para um lado e depois, tranquilamente, para o outro, com o único objetivo de liberar a tensão, que fez morada - anos a fio - bem no meio da coluna encurvada pelo peso do mundo.
Braços ao longo do corpo, estica uma das pernas, enquanto a outra permanece encolhida; e muda a posição calmamente, sentindo cada músculo se retesar e relaxar, um de cada vez. (Eles respeitam seu ritmo próprio. Já não têm pressa.)
Com o corpo jogado no meio da cama - num estupor de relaxamento quase orgasmático - deseja a si mesma um bom dia e se levanta, pé direito primeiro - nua e descalça. Fuma um cigarro, saboreando cada suave trago, enquanto a água do banho esquenta.
Feito dragão - fumaça saindo pelas ventas - separa o vestido de flores e cores, e as sandálias baixas e abertas, aquelas dos bons e felizes tempos quentes, enquanto sacode o quadril no compasso da música que dança na rádio.
Cheirando à verde, sorriso entalhado no rosto e óculos escuros gigantes, sai para a rua e instantaneamente se deixa embriagar pela estonteante beleza ao redor.
Mas ela não sabe que tudo de mais belo que vê, sai de dentro de si; que são seus olhos que emprestam matizes ao mundo, e seu toque o que torna o destino macio.
Com toda a felicidade e leveza que o desconhecimento lhe oferta, ela vai... flutuando em sua nuvem de amor, divide irmamente cada pedaço do seu bem maior - a vida - com cada um, qualquer um, que lhe atravesse os passos e lhe deseje um simples, feliz e bom dia.

Sylvia Araujo

Estupidez

Em dias como esse, me permito o amargor. Não de quem desiste, mas de quem pára, observa incrédula, e insiste - ainda assim - no melhor de si mesma.
Tem dias em que desacredito piamente que esse mundo ainda se salve do incalculável destruir humano.
Tem dias em que sofro dores que ninguém imagina, tampouco eu. É um apertar no peito sem origem - nem direção. Um palpitar desenfreado sem peso, ou qualquer importância - a não ser a de quase fazer saltar pela boca o peito desarvorado.
Em dias como esse, me permito destruir a infiniteza do belo. Não que ela evapore e me abandone à minha própria sorte... mas que se esconde, se esconde - disso estou certa - para que o azedume não lhe embolore o viço de todo.
Tem dias em que a heroína é farsa; e não vislumbro quem salve dos males os rios, os mares, os lares.
Tem dias, escorro... Transpiro a estupidez de quem me empanturra diariamente com o seu pouco-ser, e ainda se acha muito. E quanta-tanta gente se vê maior do que é capaz de florescer!
Em dias como esse, só penso em chover. Gotejar torrencialmente pra, quem sabe - ao menos - sair de alma lavada.
E seguir adiante.
Sylvia Araujo

Ele

Ele faz das palavras moinho, certeza, caminho. Ele sabe o que diz. Melhor que isso, ele sabe como dizer. E pra quê.
Sem me podar um centímetro das asas, me tem nas mãos - sempre abertas. Junto dele sou como pássaro, que não se cansa de ver a beleza do mundo; que plana horizontes e volta - todos os dias - pro calor do seu ninho, do seu carinho.

Ele faz dos seus braços meu porto. Ele sabe - muito bem - o que faz.

Sylvia Araujo

Eu estou em branco.

De um branco saciado de matizes multicores.

Sylvia Araujo

Mergulho

Caminham enlaçados pelas ruas sem destino, cantarolando a mesma música, às seis da manhã. Depois de uma noite inteira cheirando à sonho, mastigam pastéis de feira como se fosse rotina dividirem o mesmo tom. É como se o ontem virasse outra história, e as páginas começassem a ser preenchidas a partir do primeiro sorriso de cúmplices que trocaram, assim que o sol nasceu.
Se olham no fundo da alma, como quem identifica - como quem certifica - que não existe outro lugar pra se estar, além de ali, sentindo tudo aquilo.
Sem trocar uma palavra, se atiram. Juntos. De cabeça.

Sylvia Araujo

Hábito

Tá doendo.
Tá doendo muito.
Tá doendo tanto, que nem sei se é dor ou se é dormência.
E eu deixo doer.
Deixo doer com algum prazer, até...
Já me disseram que é masoquismo gostar de latejar.
Eu adoro... Extasio...
Virou hábito me deixar chover em dia de tempestade.
(Não gosto tanto do Merthiolate, porque hoje ele já não arde
- Só o que arde, cura.
Só o que queima, cicatriza)
O prazer que sinto na dor talvez não seja por ela em si.
Talvez seja pela certeza de que - por causa dela -
re-vivo mais forte.
Talvez seja pela vontade de desmoronar
- pra me reconstruir depois, em um voltar a ser.
Dia após dia.
Dor após dor - eu sigo.

Tá doendo.
Tá doendo muito.
Tá doendo tanto que dessa vez volto inflamada
- ainda melhor.
Deixo doer com prazer, até...
Até o pranto findar.
Até eu me recompor
- E voltar a brilhar.
Eu volto.
Eu sempre volto.
Virou hábito me deixar raiar em dia de primavera.

Sylvia Araujo

Quesefoda.

Por mais que se faça, nunca é suficiente. Por mais que se esfole, por mais que supere, por mais que projete, nunca, nunca, nunca-jamais é suficiente!
Se colocar no lugar do outro e sobretudo respeitar a maneira com que ele enfrenta as situações, há! Imagina, se dar a esse trabalho... O bom é mesmo apontar o dedo em riste, criticar com a boca cheia de insultos e dizer com aquele ar de superioridade: "eu faria diferente". Ah, vai se foder, vai...
Quero ver viver a vida que eu vivo e estar sempre com um sorriso no rosto, se esforçando pra agir da melhor maneira com o mundo.
Quero ver se doar tanto, e encontrar forças, vindas sabe lá de onde, pra ainda dar mais. E mais. E mais.
Quero ver dar todos os passos - dia após dia - com a confiança de que tudo vai dar certo, sabendo que é você e você. E mais ninguém pra segurar a corda, se você escorregar no barranco.
É muito fácil falar. É muito fácil julgar. É muito fácil ofender, agredir, magoar. Difícil é estender a mão, é oferecer ouvidos, é reconhecer. Difícil é dar o melhor de si com o coração aberto, sem esperar nada em troca. É amar, respeitar, desculpar.
Mas eu sempre fui do contra mesmo, e nunca gostei de nada fácil, não... Só fico triste que existam pessoas - muitas, aliás - que não tenham idéia do peso das palavras e dos olhares de reprovação que saem displiscentemente metralhando por aí. Fico triste por elas, pela sua infelicidade. Porque vida que gira em torno do alheio não deve ser lá das melhores...
A sorte é que sei quem sou, o que procuro e o que mereço. E tenho consciência de que faço sempre o melhor que posso. Esse é o meu caminho e por ele vou seguir, até que mude de idéia, ou encontre algum melhor. Mas se mudar o rumo dos meus passos vai ser porque eu quero, e porque acho que será o mais acertado pra mim e pras pessoas que eu amo.
O resto, meu amigo, sem ofensas: quesefoda!

(Pronto. Falei.)

Sylvia Araujo

Na estante

Eu estou na estante.
E todo mundo que me lê,
Me acha interessante.
Mas eu anseio um só leitor:
Que me folheie,
Que me floreie,
Que me encoraje -
Palavrandante.
Palavraescrita,
Palavralida -
Palavramante!

Sylvia Araujo

The best of the year

Uma vida inteira depois, a máxima do ano:
"- Se você tivesse parado de fumar, estaríamos juntos até hoje."

Não preciso nem dizer que estou gargalhando até agora.
O ser humano é mesmo uma piada. E muito da chinfrim.

Como é que alguém pode se achar capaz de tomar pra si o direito de limitar o outro? E pior, responsabilizá-lo pelas suas próprias limitações? Fico perplexa.
Se você possui rígidos padrões umbigais, que se aproxime de quem corresponda a eles, oras bolotas... ou estou errada?
O maior fracasso dos relacionamentos, a meu ver, se deve às incansáveis tentativas de transformar o outro em um mero reflexo de si mesmo. Mas pra quê, se a maior riqueza do estar junto é exatamente conviver com as diferenças?
As pessoas não devem ser podadas. Mas regadas - com afeto, apoio e compreensão.
Eu não quero ser metade de ninguém, porque já sou inteira. E se é pra se esforçar em me partir ao meio, nem precisa perder seu tempo. Porque é certo de que, no fim das contas, quem vai sair pela metade é você. Eu duplico! Multi-plico!
Fico aqui então - tranquila - com meu cigarro aceso e meu martini duplo, na boa e velha companhia dos meus tão serenos lampejos de sanidade. Afinal, já bem dizia a minha vó: "- Minha filha, escuta bem, prestatenção: antes só, do que mal acompanhada!"

Ah! E antes que eu me esqueça:
- Desculpa, meu bem, mas acho que - com ou sem cigarros - nós não estaríamos juntos não... Amigos? ;o)

Sylvia Araujo
Lugar bom de se estar, esse tal de aqui dentro.
Melhor companhia não tem, que essa tal de eu mesma.
Som mais caloroso não existe, do que esse tal de silêncio.

De todas as lutas sem rima, a que melhor travei foi por mim.
De todos os momentos de horror, o vencedor sempre foi o amor.
De todas as lágrimas de dor, de lá - magnânimo - floresceu o sorriso.

Eu venci. E vencedores esmorecem em batalhas;
Mas não perdem a luta.
A minha tá ganha. Eu sei. Eu acredito.
Porque dentro de mim mora o esforço
Do doar, do viver, do sentir.
E por mais que tropece,
Por mais que me engane,
Vem a vida e me mostra o que é estar vivo.
E me desbundo, me deslumbro, ensolaro
A cada prova que tenho de que aqui é mesmo o melhor lugar pra se estar.
E eu estou. Eu vou. Eu vôo. E não páro nunca.
Eu quero é mais! Muito mais!

Sylvia Araujo

Lindeza

A beleza é mesmo relativa... O que é o belo, afinal, além de um conjunto de coisas que te toca o coração?
Hoje, depois de algum caminho trilhado em busca do melhor corpo, do melhor cabelo, da melhor pele, me deparo com o óbvio: a beleza vem de dentro. Sim, a beleza é o que você faz com os seus dias, a maneira como encara a sua vida, a forma com que enfrenta os seus problemas... Beleza, pra mim, é ter a capacidade de enxergar e viver o belo que se desnuda dia a dia (nas coisas mais simples); e muita gente - feia - insiste em virar as costas e embrutecer os sentidos.
Lindo é aquele que ama. Lindo é quem deseja, quem apóia, quem sorri. Lindo é quem não dispensa momentos felizes, e não troca um pôr do sol por nada nesse mundo.
Não me venha com perfeição - corpo malhado, pele queimada e olhos de vidro. Anseio vida. Preciso tempestades, humanidades e boas lágrimas. Necessito incoerências, desejos e boa vontade. Eu quero é que a beleza se afaste do raso do espelho e mergulhe na imensidão do conhecer-se. Porque quem se conhece, se ama. E quem se ama, além de tornar-se belo, abre as asas e se liberta.
Taí, resumindo tudo: lindeza é permitir-se liberdade. Lindeza é ser livre!

Sylvia Araujo

Ele

vê o mundo com bons olhos.
E sorri pra vida com a leveza dos puros.
Isso é importante.
Isso é muito importante.

Sylvia Araujo

Linha tênue

Caminho sempre na linha tênue entre romper e solidificar.
É isso que dá sentir tudo.
É isso que dá sentir demais.

Sylvia Araujo

Grito mudo

Às vezes queima tanto, mas tanto, que é como se o peito estivesse sendo dilacerado pelas unhas mais afiadas... A vontade que dá é de soltar um urro e lançar tudo pela janela - ver voar roupas, objetos e sofrimento - pra depois sentar na quina do rodapé, com as pernas dobradas e a testa encostada nos joelhos, e cantarolar baixinho, como que ninando o choro, como que acalmando a fera.
Às vezes dói tanto, mas tanto, que é como se a cabeça estivesse sendo esmagada por uma prensa gigante... A vontade que dá é de sair correndo, com os braços abertos, deixando que o vento carregue pra longe tudo o que fere - pra depois cair no mar e nadar, nadar com fúria, até ficar exausta e não sentir mais nada: nem as pernas, nem os braços, nem a garganta, que insiste em fechar.

A vontade que dá é de esmurrar as paredes, até os nós dos dedos sangrarem.
A vontade que dá é de arrancar os cabelos aos tufos, com toda força do mundo.
A vontade que dá é de dormir encolhida no chão do banheiro.
E nunca mais acordar.

Mas vontade passa.
Enquanto espero que ela vá, mastigo os cantos das unhas, recuso comida e soluço trancada no armário. (Sim, eu me firo. Faço isso porque me sinto incapaz de ferir qualquer outro que não seja eu mesma.)
Vontade passa. E eu ainda tenho forças pra fazer ela passar...
Enquanto espero que ela vá, olho pro mundo com aqueles olhos distantes de incredulidade, sem ver um palmo à frente.

Ainda bem que vontade passa...

Sylvia Araujo

Vai!

- Não seja gelo, derreta! Desfaça essa máscara; ela não serve pra nada e não cai bem em você.
- Não seja métrico, descambe! Desfaça essa rima; ela te prende e amordaça, não te deixa viver.
- Não seja pudor, pereça! Desfaça esse muro; ele te isola do mundo e te afasta das cores.
- Não seja prazo, se expanda! Desfaça limites, eles seguram teus passos, te bloqueiam os sonhos.

- Tome as rédeas! Tome as rédeas agora! Vaaaaaiiiiiiiiiiiiii!



(Começo jogando por terra - e pela janela - tudo aquilo que me define. E me refaço, me transformo - reconstruo...
Não aceito rótulos e legendas, quando posso ser - e me tornar - absolutamente tudo o que eu quiser, em qualquer momento que desejar. Absorvo, a todo instante, cada preciosa minúcia e internalizo. Faço do som, cheiro, gosto, textura, uma cartilha que estudo incansavelmente, até me tornar a própria, pra depois ventar tudo ao ar. - Eu gosto de me forçar partir, porque quando volto, volto sempre a preencher. Eu sou lacunas: milhões delas.
Ainda me transformo natureza... Ô! Ainda, feito camaleão, mimetizo e me desfaço para ser outra, a cada nova casca de árvore que apareça; ainda desintegro sob tal palavra ou fração e me retorno, branda...
Então minhas asas se abrirão a cada vazio que encontrarem, pra que, em viagem liberta, eu possa me encher novamente, até que o peito quase arrebente - eu quero estar cheia de vida.
Eu quero mesmo é transbordar!)

- Não; não me contenha!

Sylvia Araujo

Contenção

Despertou no meio da madrugada escura, cheia de silêncio. Tateou ao lado e esbarrou o vazio. Tocou a testa, se descobriu febril - o corpo ardia... Da fronte úmida escorria o sonho. (Sentiu a respiração ofegante na nuca - tão quente - como a segundos atrás) Latejava amor contido. Pulsava espasmos. Ao abrir os olhos se encontrou sozinha...
Despertou no meio do silêncio escuro, cheio de madrugada. Levantou da cama e pegou o isqueiro. Acendeu a chama, certa de extrair da fumaça companhia - o coração sofria... Abriu o chuveiro, e sob a melodia da água se fez corredeira. (Com a brasa queimando na beira da pia, submergiu no rio - até ficar sem ar) Latejava vontade. Pulsava o desejo de sentir aqueles braços um dia...

Secou os cabelos com o vigor de quem expulsa pensamentos. Deitou nua. Fechou os olhos e adormeceu. Não despertou mais.
(Sem nem sequer perceber, se entregou sorrindo...)

Sylvia Araujo

Eu não quero ser teu porto;

mas o barco que te navega pra longe...

Sylvia Araujo

Maldita-viva

Maldito grito que não me escoa,
Maldito nó na garganta muda,
Maldito verbo que se cansa e cala.
Maldita letra que não me expressa,
Maldita fome que me alimenta,
Maldito sonho que me faz insone.
Maldito desejo de alegria,
Maldita vontade de amor,
Maldita crença no ser-humano,
Maldito peito cheio de dor.
Maldita sou eu que não desisto,
Malditos meus passos sempre constantes,
Maldito futuro cheio de planos,
Maldita mente que me agoniza.
Malditos beijos,
Malditos laços,
Maldito eixo,
Maldito abraço.
Maldita arte que me enlouquece,
Maldita música que me ensurdece,
Maldita poesia que me anoitece.
Maldita vida,
Vida tão maldita...
(Toque me encanta,
Cheiro me leva,
Gosto me espanta...)
Maldita vida que me reflete
E me faz sofrida,
Maldita-viva...

Sylvia Araujo

Colo

Colo é terra regada por olhos de dor.
É certeza de ninho em tempestade.
É discurso carregado de silêncio.

Sylvia Araujo

Cicatriz

Cicatriz pulsa-lateja.
Ferida aberta, escancarada
Por trás da pele fina de sorriso.
Tô cansada de doer.
Tô exausta de tanta guerra
Travada por paz;
Exaurida de fortaleza.
Eu estou ruínas,
Vou por um triz...

Cicatriz sangra-escorre.
Dolorido viver no salto,
Cabeça erguida, coração aberto.
Tô cansada de morrer e reviver
- Sem respirar, espairecer.
Eu quero férias
Pra chorar na sala!
Estou um caco,
Vou meretriz...

Sylvia Araujo

Próton

Jurou a si mesma não mais escurecer.
Decidiu estampar nos olhos, o riso de quem ama viver.
- Mas isso não desabona sua luta-labuta de quem tem coração...
Ela sofre, mas não faz do desejo de morte sua alforria da dor.
Ela dói; ela escorre...
Porém, aprendeu com as bruxas a mexer caldeirão: não remói as loucuras - comete.
Ela arde de amor.
Ela é toda calor...

Sylvia Araujo

Elétron

Um dia acordou relutante e recusou a gaveta dos pretos. Escolheu a camisa mais clara esquecida no fundo do armário e saiu. O azul atravessou seus olhos e ganhou o mundo; de cinza o dia virou multicor. De peito aberto experimentou os gostos, saboreou os cheiros, se abriu sorriso; paralizou.

No outro dia levantou tristeza e se entregou. Abriu a gaveta de sempre e pegou a camisa surrada - ato reflexo. Desamassou a dor no corpo, enquanto saía - olhos no chão.
Choveu. Como sempre chovia desde que se lembrava dos dias. Não adianta: preto é preto - invariável.
Esqueceu o azul e os sonhos e escolheu enterrar-se vivo.
Mais fácil assim...

Sylvia Araujo

Hiato criativo

A tela branca implora matizes. E as linhas, reticências. Tem dias em que elas se trancam e não se revelam por nada. Gritam sentidos confusos; interrompidos-inseguros. Alguns rabiscos acabam, no entanto, se insinuando por medo da dor. Mas por falta de encantos, desistem. E se entregam, fazendo - de fato - ferir e agonizar o amor.
Na tela lisa vem traço em preto; diagonal, inexpressivo. O sol não possui amarelo, e da rosa não escorre tampouco o vermelho. As cores acordaram egoístas, e não vão dividir seus fascínios - já me disseram - com o peito vazio que empunha o pincel. É preciso sonhar...
Nas linhas amargas, palavras distantes suplicam um elo; não enxergam razão. Precisam do peito repleto de ardor, e no oco do meio não encontram nada, nada além de estranho e extremo rigor. Elas querem dançar sem os passos marcados, mas a mão que empunha a caneta, o ritmo desencontrou, e por fim, o calor esfriou . Sem sentimento a poesia não vive. É preciso vibrar...

(A miséria - no fundo - é da alma, que insiste em enxergar preto e branco um mundo tão cheio de tons e nuances. Miseráveis aqueles que impedem que bailem - em seu ritmo próprio - as letras que vivem tão dentro de si.
Que o tempo desfaça o hiato. E que, depois da tempestade, nos chegue a bonança e a abundância, de um tempo repleto de cores e letras, que se entrelaçam - e se mostram - felizes e inteiras de fato)

Sylvia Araujo

Leve

Já era hora mesmo de encontrar leveza... Seguir com falta de ar exaure. É preciso paixão e encantamento; mas viver apaixonada e encantada, com doçura e serenidade - pra variar só um pouco - é uma experiência única e absolutamente reconfortante.
Os passos, se dados conscientemente, um após o outro, nos levam aos objetivos com precisão cirúrgica. A palavra da vez é sabedoria. Quando se descobre esse segredo, a meta se torna buscar - incansavelmente - desbravar os caminhos que levam aos recônditos da alma, onde é possível encontrar a unicidade de todas as coisas, de todos os sentimentos, em um ambiente de harmonia e paz.
Desde que percebi que a chave da transformação está dentro de cada um, tenho me preparado dia após dia para essa nova vida que sempre almejei levar, e para a mudança necessária de atitudes e pensamentos para que isso de fato aconteça. Não existe nada mais exato do que o ditado que diz: você atrai o que transmite. Pura física! E eu estou em paz. Serena, tranquila, equilibrada. Sem nos darmos conta, as coisas começam a se encaixar e a vida se mostra mais dócil e menos rascante, quando enfrentamos os problemas sob essa nova ótica.
Não dá pra viver de dor e de lamentos; é inviável se alimentar de frustrações, culpas e medos. É preciso perceber que somos nós que fazemos a vida. Que somos nós que damos a ela o olhar que queremos dar; e que vivemos aquilo que nos direcionamos a viver, de acordo com nossas escolhas, de acordo com nossos caminhos. É preciso acreditar em dias melhores. É preciso sorrir com mais frequência. É preciso abraçar e amar pessoas queridas, aguçar os sentidos e perceber através deles, com novo vislumbre, o mundo deslumbrante que existe em volta de nós.
Visualizar os arredores com olhos vivos, faz com que nos sintamos e nos tornemos vivos também.
Não deixemos que a vida escorra por entre os dedos.
Não permitamos que ela passe por nós sem que tenhamos, ao menos, sentido seu gosto na boca.
Sejamos felizes, em cada mínimo instante da nossa tão breve existência. (Não deve ser fácil olhar pra trás e perceber que não fizemos tudo o que estava ao alcance das mãos.)
Que jamais nos arrependamos por não ter dado tudo, por não ter feito tudo, por não ter amado mais...

Sylvia Araujo

Dança

Ele um dia me disse que as minhas palavras dançavam. Eu já sabia, mas mantinha o segredo guardado, com medo de que elas pudessem me ouvir e perdessem o rumo dos passos. Letras descompassadas são como armas - das mais perigosas - destruidoras em massa. (É preciso cautela)
Desde que vi montes de mãos se entrelaçando no papel, estava certa de que ia ter baile; e que, dali em diante, tinha perdido o controle. Abri o salão e elas, calçadas com os melhores sapatos, escorregavam leveza na madeira lustrada dos meus versos e prosas. Dali saíam frases inteiras e períodos marcados de muitos compassos, e eu - no meu descompasso - aturdida, deixei que me fossem envolvendo.
Hoje não rabisco mais linhas sem acompanhar o seu ritmo íntimo. Minhas letras, arrogantes, não bailam mais sem marcação. Elas pedem pausa e inclinação. E eu dou. Porque, no fundo, no fundo, é por elas que eu sou.

Sylvia Araujo

Poesia

A poesia (me) escorre.
Os dias, com poesia, são mais vivos.
Os sonhos, muitomaisdoces, com poesia.
E os abraços, ah, os abraços... com poesia, os abraços - intensidade...

A poesia (me) socorre.
As dores, com poesia, sem mais rancores.
Os amores - reféns de ardores, com poesia.
E os momentos, ah, os momentos... com poesia, os momentos - encantamentos...

A poesia me leva. E me traz,
Feito onda quebrando na areia.
Me escorre, tal água de cachoeira.
Não acaba. Não tem ponto. Infiniteza.

A poesia me beija. E me fere,
Feito rosa crivada de espinhos.
Me socorre, tal mão em beira de precipício.
Não me solta. Não me deixa. Correnteza.

Eu quero viver de poesia. (E morrer dela)
Eu quero morrer com poesia. (E viver pra ela)

Sylvia Araujo

Recomeço

é não ter medo de virar do avesso.

Sylvia Araujo

Coisa boa coisa

Coisa boa é sol à pino,
Sorvete de pistache,
Tinta nas mãos...
Coisa boa é mágica!
Chá quentinho
E cobertor,
Drama clássico,
Chocolate.
Ai, coisa boa que é sorriso...
Jardim Botânico,
Paineiras,
Parque Laje,
De bondinho, coisa boa,
Arcos da Lapa - Santa Teresa!
Coisa mais que boa abraço é.
E beijo,
E toque,
E morango,
E kiwi!
Ai que delícia que é música na rede,
Criança correndo,
Amigos por perto,
Uma tijela enorme de açaí!
Boa coisa é sentimento grande,
É a vida imensa.
É tomar um vinho,
Trocar idéias,
Cantarolar baixinho.
Delícia mesmo é piquenique,
Aninhar um gato,
Dançar na chuva,
Correr na rua,
Andar descalço.
Mas boa, boa mesmo é o amor, que faz tudo que se faz ser coisa mais que boa!

Sylvia Araujo

Em lugar nenhum

Não sei como, porque, nem quando, me perdi. Não me acho nas flores, na lama, nem no gosto. Não me vejo em mim. Não sei por onde andei. O fato é que me desencontrei nos tantos caminhos e atalhos; nos tantos buracos e afins - e fins. E por tantos lugares passei, por tantos medos viajei, que talvez um deles me tenha tomado pra si. Sem minha autorização, me enfiou num saco e me levou daqui.
Não sei como-porque-quando-ou-onde me perdi. E não me acho, por mais que cate, por mais que chute, por mais que berre. Parece que fiquei surda. E muda. E invisível. As palavras são as únicas que parecem nunca desistir. Mas nem nelas me encontro. Cuspo com força o que passa dentro, pra ver se em algum ponto me enxergo. Mas nada; mas tudo. Mais desesperadamente imundo é esse chão que abre.
Não sei o que houve. Só sei que o espelho gargalha. Eu também não estou lá. Eu também não estou aqui. Eu também não.

Sylvia Araujo

Óbvio

Manoelando eu desinvento as dores.
Elas são tão pequenas perto da ausência de charcos pra caracóis, que desaborreço.
Não me faltam paredes. Me esvaziam é lagartixas!
Talvez se eu fosse um prego torto, caco de vidro ou lasca de pedra,
Talvez assim, e só assim, as árvores me brotassem.
A imaginação, pois, é fruta.
E o desencanto, encantamento.
Nos quatro cantos, não há quem me desfaça do nada.
Prefiro hoje o nada, no lugar do tudo que me desorienta.
Manoelando, percebi que o ínfimo é glória!
A complexidade caiu em desuso, agora.
No meu mundo eu vou é pintar violetas, pra ter - em eterno - beija-flores por perto...
Eu vou é desofrer em rios; desacostumar o cio.
Eu vou é desenraizar!

Sylvia Araujo

Anjos

Anjos existem. E não são feitos de brumas. Nem plumas. Eles tomam antidepressivos e usam alucinógenos. Têm dor de dente e diarréia. Uns são ateus; outros tantos budistas.
Anjos, os meus anjos, sentem fome. Penteiam os cabelos e bebem cerveja no pé sujo da esquina. Caminham sem saber pra onde, e choram às escondidas no banheiro. Há quem diga que um deles insiste em jogar na mega sena, toda santa sexta feira.
Quando se encontram, se reconhecem. Juntos, se recarregam de paz e de alegria. Eles sabem sorrir e adoram uma festa. Alguns fazem terapia, outros pedalam incansavelmente até as paineiras.

Anjos, definitivamente, existem. Eles dão as mãos e se abraçam, como se cada dia fosse o último. Riem das próprias desgraças e sofrem com a dor dos outros. São notívagos, mas adoram o sol.
Os meus tão queridos anjos, sentam no meio fio e transformam a vida em música, transpiram arte. Não sabem quase nada, mas sentem tanto, que nada, nada-nada, escapa. Eles tomam porre. Eu já vi.
Esses são diferentes. São tão diferentes que vão se completando até formarem um só. E desse um só, só o que se pode esperar, é uma onda gigante que te embarca e faz tudo virar amor. Eles transbordam...

Anjos existem. Os meus maravilhosos anjos existem. E por mais que não tenham asas, eles pairam pertinho das nuvens. E com o peito cheio de amor, levantam uns aos outros e sempre seguem adiante. Juntos, eles não desistem. E eu, de mãos dadas com eles, também não.
Sylvia Araujo

Sem vozes

Muda. Completamente afônica. Paralisada, em choque.

É hora de transformar, crescer, desabrochar.
Não sei pra onde ir. Nem por onde começar.
O que sei, sem certeza alguma, é que é preciso se jogar pras asas começarem a bater. Mas o que batem são os dentes, sempre. De medo, pânico, pavor completo.
Então espero. Com o peito apertado e a garganta lacrada.
Respiro e acordo, diariamente - sorrateiramente.
Até quando, não sei.

Sylvia Araujo

Free

Depois de um dia inteiro regurgitando fracassos, junto com o pastel e o copo de refresco aguado que colocou pra dentro às nove da manhã, chegou em casa quase rastejando e se jogou no único espaço da casa onde não havia roupas e tralhas espalhadas. Num ato reflexo, abriu a bolsa entupida de dejetos e pegou o maço de cigarros amassado. Vazio. Virou a bolsa no chão e encontrou mais dois maços. Também vazios. Entrou em pânico. No meio do monte de papéis cheios de números sem nomes, canetas quebradas e cacos de vida, viu quinze centavos reluzentes. Levantou tremendo e caramujou até o quarto. Esvaziou cada uma das nove bolsas multicoloridas e contabilizou: doze centavos em moedas de um e cinco. Faltavam três. Três míseros centavos pra que conseguisse enfim pregar os olhos. Pegou cada calça das enormes pilhas de roupas que se perdiam em cima da cama e das cadeiras - uma a uma, meticulosamente. Nada nos bolsos, além de lixo e areia. Nem se preocupou em verificar de onde veio a areia, o que provavelmente tentaria explicar - ou compreender - uma semana depois, quando resolvesse organizar sua vida de uma vez. A única coisa em que pensava era que precisava de três centavos pra conseguir voltar a respirar. Em desespero, depois de revirar cada caixa, cada bolso, cada canto mais improvável da casa, resolveu colocar os vinte e sete centavos no bolso do short mais velho e curto da adolescência, e sair cambaleando pela rua vasculhando o chão. Na primeira esquina vislumbrou cinquenta centavos. Antes de sentir o alívio percorrendo a espinha, percebeu que a moeda não valia mais, como a maioria das coisas na sua vida de merda. Durante a volta no quarteirão escuro e vazio, encontrou - no meio de uma pilha de folhas úmidas quase apodrecendo - um círculo cor de bronze. Cinco centavos quase irreconhecíveis. Com seus preciosos trinta e dois centavos nas mãos suadas de unhas mal feitas, apressou o passo até invadir o boteco mais imundo e degradante de Vila Isabel. Do meio de montes de seres cambaleantes e fétidos levantou um dos braços e pediu ao português de bigode engordurado, com a caneta atrás de uma orelha e o ramo de arruda murcho atrás da outra: Um cigarro varejo, por favor. Entregou as moedas quase ao mesmo tempo em que puxava o isqueiro preso na corrente, ao lado do balcão, sem se preocupar com os valiosos dois centavos de troco. Foda-se o troco! Antes de abrir a porta de casa, depois de quatro longos e inebriantes tragos, a fumaça terminou seu trabalho. Sem escovar os dentes, pra não perder nem um único segundo do adormecimento causado pela nicotina, afastou as roupas, os medos e os sonhos, se enfiou embaixo do lençol e fechou os olhos, torcendo pra que o sono dessa vez chegasse rápido, mais rápido que a fome do corpo e da alma.

Sylvia Araujo

Recomeço

- É, fez sol.
(Inevitável o sorriso no canto da boca, secosarcástico)
Ela fez de tudo pra tempestade que vinha esperando cair. Acordou sem dar bom dia aos gatos negros, dos olhos melados. Tomou um banho gelado e se postou nua, de frente pro espelho, com cara de desgosto. Olhou. Se viu, se absorveu. Aborreceu.
- Vai chover. Torrencialmente. - desígnio que se deu antes mesmo de sequer abrir a fresta da janela.
Pegou a necessaire dos dias cinzas - aquela de tons arroxeados - e espalhou na mesa suas cores de dor. Era luto o que sentia, e os olhos, a boca e os medos também sabiam da chuva. Sentiam. Foram se transformando pretos, marcados, doídos.
Sorvendo um copo de água com limão, se olhou reflexo. Se endureceu.
- Vai chover, trovejar, alagar.
Abriu o armário e foi direto pra gaveta dos esquecimentos. Estavam todos lá, intocáveis, os tecidos mais duros e coniventes, de toda uma vida de entregas. Escolheu o que melhor combinava com as unhas vermelhas-descascadas, enormes e pontudas, cultivadas somente para o encontro dos raios e trovões.
De sobretudo preto, imenso, tampando metade dos rabiscos de morte multicores que gritavam na pele branca da batata da perna, sentou no canto do quarto. No chão. Colocou um coturno pesado, como quem se protege da guerra, como quem nunca mais viu leveza. Com a cara e os cadarços amarrados com força, se fez nó - indissolúvel, intransponível. Levantou, pegou a bolsa cheia de restos e trapos e bateu a porta, certa da despedida.
- Já tá chovendo, desaguando, desabando tudo; é assim...
Mesmo de óculosescurosmaisescurosimpossível, sentiu a claridade quando ouviu a primeira buzina, antes de ultrapassar o portão. E percebeu que, mesmo que queira e se prepare cuidadosamente para a chuva, quando o sol põe na cabeça de brilhar, ele vem. Não tem jeito. Fim.
Desordenada, encabulada e por fim divertida, largou os cinzapretos no canto da grade e saiu descalça, com a maquiagem pesada borrada pelos rios de incredulidade... Um sorriso de alívio, discreto, se fez notar nos lábios.
- É. Fez sol.

Sylvia Araujo

Aridez

Abundância de idéias; sentidos, interrogações - milhões!(?)
Escassez de letras, finais - das reticências! (...)
Instante de absorção. (absortos-absorventes-absorvidos: introspecção, deslumbramento, confusão desavisada)
Mas eu volto.
Muito breve chego.
E os acentos vão falar do monte de magníficas coisas-pensamentos que ando mastigando - 33 vezes a cada garfada!
Antes de pensar em engolir, prometo que cuspo. (Melhor pra digestão é gosto sem peso)
Afinal, alguém nesse mundo - você, você aí - ainda insiste em me lerdevorarseaquecer, apesar de provavelmente ter desistido de entender.
Ah... fica triste não... Apenas ouça. E sinta!
Compreensão é além-mar, deixa estar.

Cheiro pra quem fica.

Sylvia Araujo

Blá blá blá

Não gosto que me sinalizem que não faço sentido - posso não fazer pra você, mas aqui dentro, cada coisa tem seu cativo lugar, sim, senhor!
Não gosto que ignorem meu coração.
Não gosto que desrespeitem meus sentimentos.
- Procure ouvir mais, compreender mais, julgar menos. Dica das boas! ;o)


Blá, blá, blá quem faz é vácuo. E eu sou cheia, meu bem: de vida, de arte, de fôlego - Corro maratona de pensamento e pulo obstáculos como ninguém! (É bom acreditar. Humrum)

Blá blá blá é coisa nenhuma, é desimportância, desadereçamento. E eu, ainda bem, hoje sei que sou alguém, chéri!

Tô cansada de tanto encarcerar o verbo!
- Revolução, já!

Sylvia Araujo

Cores

Num dia branco desses quaisquer, Orgulho resolveu sair de pincel em punho pra pintar o Amor, que era bege desde que nasceu.
Voltou pra casa multicor.

Sylvia Araujo

Asas

Quando estava prestes a se atirar no abismo ela lhe deu a mão. E sorriu.
Ele pulou.
E ela voou.

Sylvia Araujo

Diálogo

(Algumas coisas a dizer. Outras tantas a ouvir... Eu tenho amor pra dividir! Eu tenho vida pra viver! E sorrisos a sorrir, dores a doer, lágrimas a escorrer...
Tanto mundo pra você, mas tanto mundo, tanto...)

- Humrum. Tá.

Ela cala e empurra tudo com um copo de água morna, cheio de vinagre e sal. Disseram que a receita aplaca o aperto da garganta. Mas desde que engolir ficou mais fácil, vem sentindo dores horríveis no estômago. Parece até que foi lá que o peito se escondeu...

Sylvia Araujo

Quatro estações

Tem dias que o coração chama a solidão e ela chega mansa, como uma dádiva, oferecendo calmaria de alto mar ao peito aflito, desarvorado. Nesses dias de verão-sol-à-pino, se aconchega em Gonzaguinha ou Elis, embebida em vinho branco, cheirando à incenso e paz. Até a fumaça, espiral subindo da pedra sabão, dança - bailarina manca-acinzentada - e afaga, amansa, me aninha...

Tem dias que a solidão nem bate na porta. Arrebenta as trancas e arremessa as garras, destruindo tudo. Machuca, sufoca e aturde o coração sofrido, tão cheio de escrúpulos. Nesses dias de inverno-cinza-cortante, as melhores linhas - quando não se tem outra que remende o oco entupido do meio - são o papel e a tinta, que preenchem os vazios com letras doídas, encarceradas, imponentes - tão cheias de si...

Tem dias em que não me basto e, só, extenuo. Nesses dias de outono-laranja-quase-ocre, preciso precisar de alguém. Espero um laço cheio de cuidado, aquele abraço de cúmplice, aquele dividir o silêncio e as lágrimas, gordas de dor...

Às vezes me canso da força que tenho, das lutas que travo, das guerras que perco; e só quero os olhos que sabem e guardam pra si. (tudo o que sabem só pra si)
Por vezes eu morro. Por vezes me mato. Nesses às vezes, quase sempre, nada me consola a não ser o cuidado que tenho de nunca morrer de todo, de sempre voltar primavera. (das-mais-borbulhantes-entupidas-de-cores-e-aromas)

Sylvia Araujo

Detalhes

Quando a chave vira no portão da rua, ele sente. E fica indócil, de orelhas em pé e rabo abanando.
Quando a chave vira no portão de dentro, ele late. E arranha a porta. E cheira pela fresta.
Quando ela entra na fechadura, ele pula. E salta, e gira e corre.
Quando a porta abre, e eu me arrasto pra dentro - feito flagelada de guerra - ele abaixa as orelhas e se joga aos meus pés, de barriga pra cima.
Ele quer amor. E cuidado. E afago - Eu também.
Ele quer desejar boas vindas e mostrar o que é ser fiel, o que é esperar um dia inteiro para dar um beijo e fazer um carinho - E eu só quero minha cama, uma taça de vinho, um cigarro aceso e um dissipador de humanidades.

Não é possível que eu possa pensar em me desfazer de tamanho amor por causa de cocô no meio da sala.
Não é possível que eu possa passar sem enxergar aquela criatura tão pura e ainda rosnar pra ele, como se tivesse razão.

Nunca se tem razão quando se deixa escorrer o óbvio.
Nunca se tem razão quando se deixa cegar e envenenar pela rotina, pela tristeza, pelos dias difíceis.
Nunca se tem razão quando o amor vem e a gente afasta por preguiça de se dar, por descuido, por puro pânico do amanhã.

Eu não tenho razão. Sei disso. E a culpa é minha. Única e exclusivamente minha.

Sylvia Araujo

Descalça

Ela tem mania de andar descalça. Diz que sente a energia do globo subindo pelos dedos, alcançando o peito do pé e reverberando nos tornozelos.
Ela jura que sabe, de olhos fechados - e ouvidos cobertos - o tamanho exato da onda que quebra na areia, pela força que sobe pro peito. Ela fala que o coração vibra.
E afirma que se enche de vida a cada grama que pisa, a cada pedra que sente.

Ela tem mania de vida. Diz que anda descalça pra alcançar o dentro. Porque o fora, pra Ela, nunca foi nada além do espelho do que vai no meio.
Hoje Ela sabe que o amor pleno é quando os olhos brilham; e que o brilho nada mais é do que a essência que borbulha dentro sendo escarrada peito afora.
O amor é Ela. O amor vem dela. (de si para si, de si para o mundo, de dentro pra fora.)

Da vida, pra Ela, o que resta - todo o resto! - é só, e somente só, o Agora.

Sylvia Araujo

Sentidos

Coração na boca, com gosto de quero mais.
Tato aguçado dá direito a arrepio de lembranças.
Os ouvidos reproduzem os silêncios do estar junto, tal qual eco.
Olfato visivelmente apurado por aquele inesquecível cheiro que persegue.
Visão ampliada, com alcance de quilômetros e mais quilômetros de mar; aquele que separa o frio do calor...

O sexto sentido segreda que estou entregue. Assumo. Adoro me sentir assim...

Sylvia Araujo

Toujours

Num dia de janelas batendo, em pleno cinza-grajaú, ela viu o roda-moinho de folhas e plumas no canto da rua; naquela mesma esquina onde atravessa - sempre! - sem olhar pros lados.
Juntou os dois pés - unhas vermelhas pra fora do couro - e encolheu os joelhos - um encostado no outro. De um impulso, de uma só e única vez, saltou e sumiu no centro. Não teve medo (ela nunca tem; afinal, não é qualquer uma que pega baratas pelas antenas).
O que dizem é que se perdeu, sem nada achar, lá no fundo daquele olho tão cheio de mundo...
Maledicências, já que ela tanto gosta de se perder - sempre gostou, é verdade! - por que é justo aí que, inexplicavelmente, se encontra. Toujours.

Sylvia Araujo

Olhos

Quando a gente sente falta dos olhos, é sério. Muito sério.
A saudade do cheiro, do gosto, do jeito, é natural quando se gosta, mas quando os olhos nos faltam, é porque a alma nos toca, nos admira... Quando a gente sente falta dos olhos, sente falta da alma. E isso é sério. Muito sério.
Sinto constantemente a ausência do transbordar do sorriso. Ou da dor; seja o que for. Da transparência do castanho rasgado, expressivo, imponente. E sinto falta mesmo quando ainda posso alcançá-lo. Ainda posso, disso eu sei. O que talvez doa é a certeza que tenho hoje do amanhã que vem, e de que os olhos - aqueles tão límpidos - vão, nesse mesmo dia, partir também.
Eu não sei o que faz a distância. Eu não sei o que será dos olhos - nossos - nos extremos térmicos do globo. Pode ser que o meu calor gele, e congele, longe daquele olhar que derrete. Ou talvez mantenha-se quente pra não deixar que o dele gangrene, e não volte jamais a brilhar. Perto ou longe, eu quero é brilho. Esse brilho que hoje, no ápice da minha vida, me faz acordar, sorrir e me encantar...

Sylvia Araujo

Áries

Áries chegou, entrou, se esparramou. Me trouxe a promessa de um vinho - tinto e seco - e o desejo de mar, de céu, de luar... Afagou meus cabelos e ofereceu seu sorriso mais franco e seu abraço mais quente. Atrás de si vai bater a porta em breve, e deixar seu rastro cheirando à vida...
Elas seguem - a vida e eu. Áries também.

De passaporte em punho, espero o dia de sentir o calor da neve outra vez...

Sylvia Araujo

Uníssono

Ele é único em uma parede repleta de uns. Se faz Todo em sua individualidade, enquanto dissolve no amplo mar de possibilidades dos papéis em claustro. É a peça que falta, o momento que vibra, o que sacia o incompleto.
Dentre todos, o mais belo sempre é aquele que escorre pintando o resto; fazendo do Todo - Um, tornando o Um incerto.

Sylvia Araujo

Que mundo bom seria esse...

Sorriso bom é aquele que vem de dentro. Vai brotando, tomando conta, sacudindo tudo, extasiando. Isso é sorriso bom; aquele que é meio cuspe, meio vômito, meio bocejo; incontrolavelmente libertador. Imprescindível!
Que começa tímido e quando a gente menos espera se transforma; vira gargalhada estrondosa-sacolejante. Falta ar, os olhos fecham, a barriga dói, mas o peito - ah, o peito!- esse se enche de tamanha alegria, que faz o cinza virar amarelo-ovo instantaneamente.
Como se dá essa transformação, eu não sei. O que sei é sempre o que sinto: arco-íris pinta o céu, pássaros se alvoroçam em revoada, até a lua se entrega e ganha rasgo, bem no meio daquela cara de bolacha, redonda, iluminada.
Sorriso bom mesmo é aquele que sai do meio, bem lá do fundo do meio... que contagia, inebria quem tá por perto. Ele, por fim, vira urro; de independência, de liberdade!

Que mundo bom seria esse, se todos os dias os sorrisos viessem nos dar bom dia.
Que mundo bom seria esse...

Sylvia Araujo

Espelho

Ele veio despretensioso. Chegou aos tropeços, estabanado, esbaforido. Tinha um sorriso tão límpido que me afastou. Não sou muito adepta aos espelhos, e como me via em seus olhos sempre que eles me alcançavam a fronte, paralisei.
Aos poucos, fui percebendo que perceber a si próprio é sempre o mais importante e que, olhando pra aquele ser humano tão cheio de medos e de amor, eu tinha a mim mesma o mais perto que consegui estar, durante todos esses anos de abundantes reflexões. Se encontrar e se ver faz parte de um processo de cura que arde e queima absurdamente. Mas resolvi que quero estar aqui, ali, com ele e comigo. Independente da intensidade da dor, serei eu enfim. Me sinto liberta e isso me basta.
Talvez eu tenha, pela primeira vez na vida, me apaixonado por mim mesma. Não é avassalador, mas sutil e sereno. Aquela garota refletida na íris de alguém tão especial me despertou bons sentimentos, daqueles que você se sente bem só em sentir.
Decidi aceitar o auto-elogio, sem a insistente mania de virar as costas e esquecer tudo o que ouvi.
Talvez eu seja mesmo boa, uma boa garota. Talvez eu seja mesmo como ele, especial, iluminada... Depois que ele chegou, mesmo sem tê-lo, o mundo ficou menos opressor; vejo meu sorriso mais leve, minha dor mais amena...
É bom ter com quem dividir o amor, mesmo que o outro não saiba. Mas não faz mal, já que o que realmente importa é que, pela primeira vez, em toda a minha vida, o espelho me salvou.

Sylvia Araujo

Samba, meu samba querido...

Ah, que saudade do Samba, aquele amigo tão digno, tão íntimo, tão íntegro... Me faz falta requebrar nas sua rodas, abrir os braços e cantarolar feliz - de olhos fechados, em pleno gôzo - no meio de tanta gente bamba... (Feliz daquele que foi tocado por ele!) Como sinto a ausência! Como me enobrece o espírito aquela batucada-sorriso! Me entope o coração o som do pandeiro, a marcação do tantan e da cuíca, o delírio das sete cordas, a energia do cavaco... Que falta eu sinto da boa vizinhança, de quem vive, nas suas entranhas, o amor cantado nos versos mais cariocas...
Me aguarde, Samba das minhas alegrias! Me espere que em breve, muito breve, estarei - em corpo e alma de passista - deixando as tristezas de lado e caindo em seus braços mais uma vez; vibrando na sua cadência, na malandragem do seu inconfundível gingado, sorrindo com a leveza de quem supera tudo - numa nota apenas!
Samba, meu samba querido... um dos amores mais antigos e mais verdadeiros, em todos esses anos de estrada... Não me deixe por muito tempo, abandonada à minha natural melancolia, e te prometo que meus pés descalços pisarão seus terreiros, minha garganta reproduzirá sua voz, e meu sorriso genuíno te enaltecerá por todo o sempre!

Louvado seja meu Samba. Amém.

Sylvia Araujo

Flor

O sol está brilhando lá fora. E Ela não tira da cabeça o dia em que viu aquela flor. Jamais sentiu tamanha doçura no coração. Mas não é a flor, é Ela. As cores se misturando e o cheiro adocicado, apenas despertaram em si o sentimento de ser.
A flor é. Delicada, perfumada e com traços só seus, não saem da cabeça de quem se deixa tocar pela profundeza, da simplicidade e da pureza, que carrega consigo. E Ela se deixou tocar; acariciar, deliciar... Viu - e sentiu - o poder da vida em sua simples carapaça de vida.
O mundo está correndo lá fora. E Ela não tira da cabeça a flor que um dia viu, esparramada sobre o muro cinza - rachado, imundo. Estava lá, resplandecente - deslumbrante - em sua importância de flor. Viu - e sentiu - o sopro de amor que vinha, e se deixou acalentar, alimentar, sorrir... guardou pra si a amplidão do que viveu, naquele mínimo instante em que se deixou tomar pelo belo.
E a partir daí, tornou-se a mais linda delas... Desencantou e se encantou com as sensações que o viver nos traz. Não é mais Ela e sim Flor, com todo seu encanto e ardor.

Sylvia Araujo

Novo amor

Quando vejo um novo amor, sinto. E entrego corpo e alma praquele que me vê. Não é qualquer um - nem pode ser - porque muitas vezes me faço sombra, me faço assopro, evaporo.
Mas quando um novo amor me vê, não tenho mais o que esconder. Ele me tem inteira, mil pedaços do meu eu - quebra-cabeça de imensas proporções. E me revelo, escancaro, ensolaro... meu coração é sem mais cadeados, trancas ou afins.
Quando sinto um novo amor, abraço - apertado, demorado - E não largo. Nunca mais.

Sylvia Araujo

Às vezes

Às vezes acordar é estranho. O sol acinzenta, e o céu - de liso azul - se enche de nuvens, daquelas bem pretas e pesadas como chumbo. É o anúncio de tempestade no peito. Chove torrencialmente cá dentro, e tudo inunda, tudo imunda. Quando se entopem os bueiros, os olhos vazam. E não páram.

Às vezes dormir é estranho. O corpo tem urgência de calma - de alma - mas a mente acelera tal tromba d`água, testando os limites, ultrapassando as barreiras. As pernas se cansam de bandeiradas. Por vezes tremem, por vezes desabam. Quando não dão passo a frente, os olhos vazam. E não páram.

Às vezes seguir é estranho. É complexo caminhar com venda nos olhos, tateando o destino. O futuro se enche de atalhos e escolher paralisa - emudece. Quando o medo não cabe no peito, estrapola. Os olhos vazam. E não páram.

Às vezes chorar é estranho. Vazam amores, pudores, dores. Vazam ilusões e desilusões da mesma maneira em que escorrem alegrias e tristezas. Daqui do meio, tudo vira lágrima. Tudo se esvai em poça. E a vontade que dá é de, correndo, ir lá e sorver tudo de novo - pra não esvaziar, pra não embrutecer.

Sylvia Araujo

Réstia

Réstia de luz
Que me resta, vela...
Pavio e cera
Aquecem meu mundo gelado.
O líquido quente me escorre,
Trilhando caminhos mais fáceis.
Deixando seu rastro
- Meu rastro -
No corpo
Branco e perfeito da vela
Assim sou...
Cheia das marcas da vida,
Queimando rápido
E derretendo
Em rubras chamas
Em rubras chamas...
E me acabo tão talhada
Por caminhos de cera,
Tortuosos
A desfazer,
A desaparecer
Em poças rígidas febris...
Réstia de luz...
Sylvia Araujo

Desabafo

foda-se.
Foda-se!
FODA-SE!
FO-DA-SE!!!!!
Vai se foder. Tomá no cú.

F
O
D
A
-
S
E
!

Vaipraputaquetepariu.
Merda!
foda-se.




Sorry...
Passou! :o)
Sylvia Araujo

Chuva

Enquanto as nuvens escurecem lá fora, tudo inunda aqui dentro.

Sylvia Araujo

Silêncio

É o grito mais desesperado que o coração pode dar.

Sylvia Araujo

Saudade

Ando sentindo falta de mim...

Sylvia Araujo

Acalento

Não sofra,
Não chore.
Tudo vai se arrumar...
Você vai ficar bem,
E voltar a brilhar!

Você vai resolver,
E continuar,
E seguir.
Você vai ser feliz,
Vai dançar e sorrir!

Confie em você,
Acredite no bem.
Se você quer
-Lute sempre!
Que o melhor
Sempre vem.

Guerreiros não estancam
De frente pro mal.
Eles seguem,
Caminham,
Até o final!

Sylvia Araujo

A vida

Nada mais é do que um emaranhado de atalhos. Cada um mais sedutor que o outro.

Sylvia Araujo

Escolhas

Sempre tive extrema dificuldade em escolher. Eu sempre quis tudo ao mesmo tempo. Passei a vida tendo sonhos interpostos e desejos paralelos. Na verdade, eu sempre quis SER tudo. Já quis ser caixa de supermercado, astronauta, escritora, jornalista, publicitária, hippie, psicóloga, arteterapeuta, música, cantora, atriz... já quis ser urso e gato. Já quis ser uma árvore, um rio, um mar... Já quis estudar línguas estranhas, pensei em largar tudo e ir pra Cuba! Me imaginei na França estudando e conhecendo os países mais próximos. Já quis ser mochileira, empresária, vereadora! E o pior de tudo é que nunca consegui ser nada, além de uma mistura enlouquecida de todos os meus desejos.
Já ouvi pessoas dizerem que quem é um pouco de tudo, na verdade não é nada. Eu já enxergo por outro prisma: quem tem um pouco de tudo faz parte de tudo, e tem um desejo enorme de conhecer e viver a vida. Eu tenho uma sede infindável de conhecimento. Bebo de todas as fontes que aparecerem no meu caminho. Das águas claras às turvas, vou me embebedando de mundo e construindo a minha história com um único objetivo: ser feliz.

Sylvia Araujo

Porquê?

Mantra
[Nando Reis / Arnaldo Antunes]

"Quando não tiver mais nada
Nem chão, nem escada
Escudo ou espada
O seu coração
Acordará!...

Quando estiver com tudo
Lã, cetim, veludo
Espada e escudo
Sua consciência
Adormecerá!...

E acordará no mesmo lugar
Do ar até o arterial
No mesmo lar
No mesmo quintal
Da alma ao corpo material...

Quando não se têm mais nada
Não se perde nada
Escudo ou espada
Pode ser o que se for
Livre do temor...

Quando se acabou com tudo
Espada e escudo
Forma e conteúdo
Já então agora dá
Para dar amor...

Amor dará e receberá
Do ar, pulmão
Da lágrima, sal
Amor dará e receberá
Da luz, visão
Do tempo espiral...

Amor dará e receberá
Do braço, mão
Da boca, vogal
Amor dará e receberá
Da morte o seu
Guia natal..

Adeus Dor...

Hari Krishna Hari Krishna
Krishna Krishna
Hare Hare
Hare Rama
Hare Rama
Rama Rama
Hare Hare"

(Essa letra precisava entrar aqui em algum lugar. É divino como, através de metáforas, esses dois conseguiram captar a essência da vida. Ou como acredito que seja a melhor forma de viver.
A poesia é sublime e a mensagem mais sublime ainda.)

Cada um descreve sua trajetória, da maneira como acha que deve, mas a cada dia que passa mais tenho certeza de que o caminho para a paz é mesmo através do amor, da tolerância e da simplicidade. Pra quê guerra, ganância, poder, riquezas materiais, injustiça, intolerância, soberba? Pra quê tudo isso, se o mais importante é viver em paz, é ser feliz, é sorrir? Pra quê barbárie se o fundamental é o abraço apertado, o beijo sincero, o diálogo honesto?
Não entendo o que o Homem tanto busca - e nunca encontra. Não entendo o motivo da tortura, da violência, da fome, das queimadas... Não consigo compreender alguém ser capaz de destruir a própria casa, poluir o ar que respira, acabar com a água que bebe! As pessoas matam por nada. Disparam pistolas em crianças por crenças religiosas. Violentam mulheres por prazer. Açoitam negros, colocam fogo em mendigos, espancam prostitutas. Que mundo é esse? Que humanidade é essa?
Parei de ler jornal e de ver TV. Alguns dizem que isso é fuga, isolamento da realidade; mas decidi que não quero - e não vou! - absorver toda essa brutalidade. Quero flores na minha vida. Quero ser feliz; andar na rua sem medo. Quero manter a chama do amor acesa. Quero confiar nas pessoas, ter liberdade de ir pra onde quiser, a hora que quiser. Posso ser assaltada, espancada, estuprada? Talvez. Mas não me permito deixar de viver pelo talvez, pelo se. Eu faço a minha parte da melhor maneira que posso. E quero - e vou! - viver absolutamente tudo o que quiser viver. Sem grilhões. Sem amarras. Sem mordaça.

Sylvia Araujo