Sai despenteada e apressada. Primeiro a filha na escola, depois o filho na natação. A Ioga fica pra depois. Volta pra casa, coloca a roupa na máquina, lava a louça da pia. Vassoura na sala, pano nos quartos, desinfetante no banheiro. Hora de buscar o filho na natação. Passa o uniforme, dá banho, comida, penteia os cabelos, deixa na escola com um beijo e um eu te amo. No ponto de ônibus lembra que precisa estender a roupa. Volta mais uma vez, pendura a roupa na corda, coloca as panelas na geladeira e, no portão - no exato momento em que as chaves caem no chão - percebe que está de chinelos. Verdes limão. Com a maquiagem já derretida entra de novo e coloca os saltos. Olha no relógio, já deveria estar na reunião. Desiste do ônibus, pega um táxi. Chega atrasada, dá boa tarde, escuta, organiza, propõe, resolve, indica. Fica aflita. É muita coisa e não há tempo. Delega, entrega e sai correndo. Hora de buscar os filhos na escola. Pega um ônibus, vai em pé. Hora do rush, engarrafamento. Abre um livro e vinte páginas depois desce na esquina. O salto quebra - estava demorando. Tira os sapatos, joga na lixeira e vai descalça. Pega os filhos, um beijo em cada um mais dois eu te amo, como foi o dia. Duas mochilas, mais bolsa de compras, laptop e pasta de couro. Quase não dá, mas tem que dar. Prepara a janta, ajuda no dever de casa, dá banho, conta uma história de dragões e princesas pra agradar os gregos e os troianos que dividem o mesmo quarto. Mais um beijo em cada um, dois eu te amo e um boa noite, durmam com os anjos. Apaga a luz. Respira. Descalça, caminha sem pressa até a cozinha. Abre a garrafa lentamente e escuta atenta o barulho do líquido estalando os cubos de gelo no fundo do copo. E aquela gota - não a mesma, outra - amarelada, reluzente, abrindo caminho pelo corpo transparente do vidro, caramujando em rolamentos circenses quase chegando ao rótulo avermelhado; aquela gota inteira, insistente, que magicamente a transporta para outro lugar. O lugar das maravilhas que, de tão mínimas, se tornam quase invisíveis aos olhos do tempo que escorre. E ela agradece por mais esse micro-poema que orvalha diante do seu rosto cansado. Porque enquanto a gota - aquela, não outra - estiver serpenteando garrafa abaixo e seu coração se mantiver atento à ela, sua vida já valeu a pena. E o amanhã será sempre outro dia.
Sylvia Araujo