Este blog é uma reunião de textos exclusivamente autorais. Para conhecer mais de mim, dividir sons e sabores poéticos, musicais, cinematográficos, e tantos outros cheiros mais além dos meus, venha tomar um expresso esparramado nas almofadas fofas do meu outro blog, o Abundante-mente. Te espero lá com as velas acesas.

22 de novembro de 2010

Offline

Olhou no espelho depois de semanas ausente de si. A barba por fazer dizia das léguas de distância e da altura do muro que construiu ao redor. O fio branco e reluzente no meio da escuridão no alto da cabeça não era nada diante daqueles olhos sem vida. Eram seus, não havia dúvidas. Mas de quem seria aquela dor que não lhe doía, mas lhe havia matado? De quem seria toda aquela imensa falta de amor?


Sylvia Araujo

18 de novembro de 2010

Cíclico

Brotei
gota.

De um fino
filete
em nascente
de cachoeira
descendo o rio
virei mar.
Beijada de sal
ensolarou
evaporei
renasci
nuvem.

Hoje
choro
tenra chuva
na busca
da essência
de ser pingo
pequeno
e límpido
novamente.

Re-começar
em ciclo
pra sempre
outra

- gota.

Sylvia Araujo

11 de novembro de 2010

Borboleta nos trilhos

Caminhava, linda e delicada. Um passo após o outro - a ponta de um dos pés descalços, tocando cuidadosa o calcanhar seguro. Os braços abertos mantinham em equilíbrio o corpo leve e franzino, e davam a ela um quê de bailarina manca. Ela vibrava nos trilhos. E sorria inteira em sua falta de dentes, era pura inocência, menina. O sol rasgava o azul, e seus fiapos brilhantes atravessavam a seda dourada que voava ao vento. Um fio da trança quase solta beijava a flor meio murcha presa atrás da orelha pequena. Seus olhos seguiam o horizonte, como se lá estivesse guardado o maior de todos os tesouros. Ela comia o futuro com a avidez dos que carregam em si a certeza de nunca terem certeza de nada. O trem, suspirando fumaça em seu ritmo marcado pela rotina dos dias, vinha operário. A menina então, se afastou da rota e deitou no chão - os olhos cinzazulados cerrados, a respiração suspensa - sentindo subir pelas costas cada vagão, cada roda. Tocava toda pedrinha pontuda com a extremidade dos dedos e as levantava com um arco do fino braço, deixando cair uma a uma as notas da sua melodia. Era o trem, era ela, era a incerteza e a beleza do improviso em forma de criança ensolarada. Era a música dos dias, do cinza, do morto, e daquele amarelo brotado em tranças, escapulindo sorrisos pela janela da boca dela. Ela era casa aberta, sinfonia escorrendo pelas portas brancas. A locomotiva, altiva e certa em seu caminho indesviável, sem olhar pra trás, sorriu.

Sylvia Araujo

4 de novembro de 2010

Pequenezas

I.


Essa dor que carrego nas palmas das mãos - recém-nascida que grita de fome, enquanto eu não tenho mais peito que lhe alimente os medos. Ando paz. Caminho esperanças. Que grite, dor. Que berre. Que morra de fome enquanto eu vingo de amor.


II.

Ouvindo Vivaldi. E parece que os insetos também, em seu balé irretocável em volta das árvores. Sobem e descem, rodopiam - quase dão as mãos. E se separam, batendo as asas pequenas em Allegro. Por entre os bambus, a vida farfalha. O assobio do vento acompanha o mar que me corre por dentro. Cheiro à terra molhada. Encho enchente - barro(o)ca.


III.

No meio do mato, despertador é revoada de maritacas. Cantiga de ninar é grilo, que cisma em fofocar com sapo ao pé de estrelas. A música é o vento, que beija as folhas como se fosse seu primeiro e único amor. A beleza é a imensidão do nada - verde musgo com pitadas de azul-céu. E é pra lá que eu vou. Vazia, pra encher de tanto e voltar maior.


IV.

Trago no peito uma rosa em broto. Na mão, a faca - incapaz de decepar-lhe a vida.


V.

Vinha pairando - beira d´água. Os pés descalços assoprando ao vento a areia fina, as unhas vermelhas recém-beijadas de mar. Nos cabelos, trazia um cheiro de vida amanhecida - transparente poesia. Cruzei seus passos, a dois centímetros de tocar sua mão. Ela me olhou no susto do vácuo que o tempo fez atravessar seus dedos nus. E naquele mel, derretido, eu vi. E tive a certeza mais certa da abelha: o meu caminho era ali.


VI.

Tudo que queria era aquelas mãos de pianista, seus dedos ágeis e longos, desenhando o contorno dos seus olhos à meia-luz. Adormecer com a serenata das falanges compridas rascunhando suas sobrancelhas fartas. Sonhar com notas de marfim. E amanhecer melodia.


VII.

Os olhos sussurram. Silenciam, lamentam, sorriem. São janelas escancaradas ao pôr do sol morno e às tempestades enraivecidas. Jardins brotados, cores. Desertos - areia e vento. Pedras de gelo, diamantes. Brutos. Os olhos vão, me são, tensão. Eles estão - um fio. Fino, leve e vivo - ligação direta dentro-fora, aqui-além. Coração que escapa. Peito que vê. Sou toda olhares.


VIII.
No meio de um soluço, a iluminação. Foi um erro - broto do desespero por sentir-se vivo. Abraçou o violão e compôs um tango. Rascante. Que lhe cortou os dedos e lhe arrancou o sangue em suspiros mórbidos. Dez mãos de terra e o sepultamento - sorriu.


IX.

Andava vazio. Cada pedaço de mato, de riso, de espanto, fazia crescer a montanha no canto do peito. Até que um dia ela veio. E brotou bonito pelos olhos - seus galhos verdes anunciando a primavera. Então, ele ventou com força e espalhou seus cacos - abrindo espaço no coração - pra que ela pudesse espreguiçar seus sonhos e hastear, enfim, a bandeira da invasão.


X.

No início, parecia uma valsa. Aqueles rasgos vermelhos na boca do céu - dois pra lá, dois pra cá. Os gritos me remetiam a um coro, uma ópera, talvez. De olhos fechados, eu tentava afastar aqueles olhinhos brilhantes. Eles tinham a vida magnetizante de uma bala de fuzil e insistiam: porquê? Eu não sei, anjo. Eu não consigo entender porque um homem deste tamanho carrega nas mãos um brinquedo que mata. E esse sorriso idiota na cara.


Sylvia Araujo

26 de outubro de 2010

Às moscas

Diante do álbum amarelecido pelos anos de clausura na gaveta dos esquecimentos, espantei-me ao ver radiante aquele garoto mirrado. Ostentava, do alto do trono da infância, um sorriso branco e sincero - ainda que incompleto e distante. Já não me recordava daquela felicidade sem pretensões. Daqueles olhos translúcidos, daquele peito aberto - daquele eu sem medo. Esbocei incrédulo, frente à fotografia gasta, um meio sorriso oblíquo. Não pelo que sou hoje - esse velho decrépito, lacrimejante de ontens em preto-e-branco - mas pelo menino inteiro do qual me vesti nos anos idos. Pelo que poderia ter sido e fracassei, acovardado. Por aquele que - pelo acaso dos passos na mata fechada dos sentimentos daninhos, que me atormentaram anos a fio - desencaminhou-se e perdeu-se para sempre de mim. Uma lágrima gorda atravessou-me os vales vincados do rosto. E apreciei, salivando, seu gosto amargo. Como quem arranca de uma vez um naco de vida dos dias mais verdes. Como quem inspira 50 anos de árvore em um só segundo. Eu não queria ter amadurecido. Poderia ter evitado as moscas asquerosas, flutuantes sobre a minha decomposição. Ainda assim, apodreci.


Sylvia Araujo

19 de outubro de 2010

Pés armados

Enquadrou o meliante. Depois da revista geral, um tête-a-tête. Assaltante que se preze não desvia o olhar, nem se rende fácil à intimidações. Ele era profissional. Chegou bem perto até as respirações se fundirem. O ar saindo de um e entrando no outro, num enfrentamento cíclico e asfixiante. Com a pulsação acelerada, puxou o gatilho. A bala perdida acertou em cheio e derrubou a seus pés o ladrão de corações. Ela pressionou o salto quinze de leve no vale de sua traqueia - enquanto ele acariciava com as mãos ásperas sua batata branca da perna - e sussurrou entredentes, com um sorriso de canto: perdeu!

Sylvia Araujo

14 de outubro de 2010

Ao meu rei Artur

Artur vem chegando num sopro de brisa. Antes de beijar demorado sua testa rosada e abraçar em aconchego o seu corpo franzino, já lhe faço uma coroa. Todos os dias fio uma volta: hoje é carinho. Ontem, felicidade. Amanhã, começo a enfeitar o alto da cabeça com as nuvens mais fofas - azulbebê. Artur vem chegando com todas as flores e cores do mundo. E sorte. Muita sorte de conhecer o amor, antes mesmo de receber o primeiro sorriso. Porque eu amo tanto, que não cabe em mim a felicidade de conceber o meu primeiro sobrinho. Artur é meu rei, de pernas cruzadas, nadando gostoso no quentinho do ventre. Ele é mais uma estrela dessa constelação que faz minha vida brilhar todos os dias. E meu peito ansiar fevereiro - já é carnaval aqui dentro.


Sylvia Araujo

7 de outubro de 2010

Oceano em brasa

Aquele mar aberto
no fundo dos olhos.
Aquele sem fim inteiro,
flamejante.
Aquele sempre
aquele nunca
aquilo tudo escondido
e entregue.
Aquele verdeazulado que grita
sem dizer uma única palavra.
Aquilo tudo em mim:
um nada-tanto tatuado
a ferro quente
no corpo em brasa.

Sylvia Araujo

26 de setembro de 2010

F(r)io

Amolou a lâmina fina na pedra gasta e atestou o fio da faca na palma da mão. O aço cortante fez brotar um rio vermelho entre as linhas da vida e da morte. Faltou sorte. E um coração no peito. Com o olhar perdido no reflexo do espelho, afundou a ponta brilhante na veia saltada do pescoço. O colo arfante suspirando o último ontem. O frio do medo, o frio da lâmina, o frio do fio - tênue. Sangrou todos os medos, escorrendo todas as dores. E acabou. Sorrindo.


Sylvia Araujo

16 de setembro de 2010

Um cisco

No broto manso

o pavor da foice.
Já se nasce
à beira da morte
- diz a noite.

O sopro pálido
leva a flor de goiabeira
pra longe.
O vácuo frio
engole a chama tremulante
da vela
- o pavio, a cera
o toque do tambor, o uivo.

Um silvo longo
anuncia o tempo
que mingua
estreito
antes um cisco
do horizonte corar
diante de tanta beleza

A aurora em mim.
Sylvia Araujo

30 de agosto de 2010

Navalha


(Alto mar no final do horizonte - Joca Libânio)




Entorpecida.
Violada. Rarefeita.
Violentamente (desman)telada.
E toda. Viva.
Um mundo inteiro dentro
a regurgitar belezas.
Tão grande-imenso. Tanto.
Tão pouco santo. O manto.
Jardins brotando em fúria
de flor em cacto. Seco.
Rompendo estéril. Um risco.
Asas me rasgando o peito.
Nu.
Completamente nu. Alado.
No céu da boca, o sal.
A gota - gorda.
E no minuto seguinte a morte.
O calabouço. O medo.
E o calor da sorte
a me acetinar o frio.
E o sabor do vento
a me saltar dos olhos.
Enlarguecida.
Emocionada. Liquefeita.
Amanhecidamente enluarada.

(entregue)


Sylvia Araujo



À Joca Libânio e sua música perturbadoramente silenciosa.

25 de agosto de 2010

Neutrino

Amanheceu lentamente em olhos anoitecidos. O peito, enfaixado ponta a ponta de silêncios, chorou baixinho - como quem murmura ao vento frio sentimentos indizíveis. Na cabeceira, a vela acesa da noite escura resistia. Pequena e morna, em seu amolecido derretimento de vela. Aquelas sombras enormes a lhe pegarem pelas mãos geladas. Aquele mesmo conhecido medo a existir sem. Aquele mesmo sem. A resistir só.


Sylvia Araujo

10 de agosto de 2010

Braile

Sou
inteira
pedaços
fragmentos
cortantes
sílabas
impronunciáveis.

À lápis
me escrevo
à espera
de quem
me soletre
os relevos

- em braile.

Sylvia Araujo

8 de agosto de 2010

Teatro

Ensaio de Marcia Medina para o meu monólogo Serial Kiiller. Em breve estreando em São Paulo.

Aguardem!

Parte I

Parte II

28 de julho de 2010

Ainda bem

Amanheceu verde - musgo fértil em ventre de pássaro brotado em horizonte. Antes de abrirem as janelas, lhe descortinou rebelde um sol redondo pelos olhos negros - os raios quentes lhe atravessando íntimos os poros abertos. Sorriu bem dentro, em céu da boca estrelado e dentes pequerruchos de marfim - as covinhas afoitas se debruçando enamoradas no parapeito das velhas rugas - e lentamente amareleceu. A brisa morna fez dançar de leve as cores vivas no varal, e veio delas em magia um cheiro adocicado e primaveril de campo em flor. Um gosto exuberante de tomilho lhe tomou de assalto a ponta da língua - sabor de lembrança que abraça apertado e não deixa partir. Permitiu então que brotasse em pura nascente uma lágrima bonita - perfeita em sua transparência arredondada - que lhe atravessou solene o rosto estreito, como quem mergulha de corpo inteiro em mar aberto, como quem assopra com toda a força dos pulmões um dente de leão - só pra ver a sua alma voar. Dia pleno, pediu ao marido-encantado que lhe escovasse com energia os brancos fios, pra sentir de olhos fechados mais uma vez o prazer do couro cabeludo se esparramando em cascata pelos lençóis trocados - a maciez de algodão a lhe afagar delicada os ombros cansados. Ao longe, uma melodia suave serenava - flautas transversas e violinos em dueto, conversavam poesia sobre rosas-chá. Falavam emocionados do brilho das estrelas e do coaxar dos sapos, como quem fala de champagne e caviar - ela embevecida, ouvia. Noite alta, pensando - o ar faltando e o amor sobrando no peito murcho - achou um bocado estranho tanta vida lhe assoberbar assim os minutos contados, fazendo toda essa batucada irrefreada no coração exausto. Então, em sussurro abraçado ao último suspiro - mastigando com calma todas as vezes em que pisou descalça a grama e dançou em par na chuva - agradeceu baixinho: ainda bem que em mim tudo sempre foi assim. E voou.


Sylvia Araujo

25 de julho de 2010

Contramaré

Envolta no ar rarefeito das minhas noites vazias, cato - uma a uma - as recordações espalhadas pelos meio-fios imundos dos sonhos que sonho. Você está sempre lá, piegas em seu romantismo exposto, em seu peito aberto, em seu derretimento de pessoa que nasceu para amar - e não se importa nem um pouco em ser contra-mão. É sublime a entrega que me faz desse teu coração sem remendos, assim, na bandeja dos dias. E eu te nego, como nego a mim mesma, fazendo cara de nojo e cuspindo com força no prato em que comi. Não te quero inteiro-rastejante - fecha os olhos e me escuta. Eu te quero não, entende? Te quero a negação dos meus desejos, dos meus planos de menina boba à espera do príncipe encantado, das minhas aspirações de mulher feita. Te quero o que não pode ser, porque só assim me rouba o sono e me deixa latejante à espera de um porvir. Só assim me tira o ar e os pés do chão. Não nasci pra ser pato em lago plácido, mas tubarão em mar revolto à espera da caça, camuflado na vastidão azul enegrecida das profundezas. Preciso nadar com fúria - contramaré furando as ondas - até me quedar exausta e sentir a vida viva pulsando em ária por debaixo da pele. Preciso que você me escorregue por entre os dedos, pra que eu vá enlouquecida ao teu encontro e te segure firme pelo pescoço - meu homem. Te quero arisco, imperfeito, falha. Te quero navalha no pulso, sussurro inclemente, sexo. Por isso hoje, em letras borradas, esse amor intocável arde. No cinzeiro cheio de cigarros fumados, os restos de uma carta* - cinzas de um nós que nunca existiu além de aí, dentro de ti.


Sylvia Araujo


* João Guimarães Rosa - A inspiração.

22 de julho de 2010

Amputada

No vaso
no centro da mesa
a flor
reinante
em amarelo
implora
em silêncio
torturante
a luz cálida
do dia.

Deseja
quase murcha
a terra
fértil
e restaurada,
os beijos
doces
e o sopro
torpe 
das borboletas.

não há quem
possa
lhe criar raízes
onde
a faca
cega 
lhe amputou
o talo.

Não
há quem possa.

Sylvia Araujo

16 de julho de 2010

Lareira

Le mins (qui)na
Lê meus lábios
Lê meu corpo
Meus pelos
Meus braços
Lenha me
Na cabeceira dos dias
Abajur ligado
Me enluare
N(cr)ua.

Sylvia Araujo

11 de julho de 2010

Securas

Ela sabe dos hojes. Antes que o sol desponte, que o calor aqueça, que a luz ofusque com tanto brilhar, levanta e repete incessante todos os passos de todos os dias. Ainda se assombra com a imensidão dessa sombra que lhe persegue os chinelos até o banheiro e de volta pra cama. Ainda tem medo da morte que ronda, que abraça e sufoca seus sonhos, seus planos, sorvendo seu ar de bailarina amputada com a lentidão malevolente dos carrascos. E ainda assim, tremendo, temendo, não revida; aperta estreito os olhos pequenos e franze com força a testa larga - os tantos fracassos rasgando estrada entre as sobrancelhas grossas. Camila costura desejos com linha solta desde que se entende por gente. E a cada passo um pedaço enorme de si despenca no chão - o corpo estremece. Espera ansiosa que a claridade desfaleça em rotina por detrás das cortinas e lentamente se esvaia, para que a escuridão se justifique em si mesma e não precise dar explicações pra tanto negrume que carrega no peito - pra tanto não no coração. Menina bonita em capa de chuva, respira ofegante entre insucessos e securas, porque nunca foi capaz de dar um laço. Jamais abriu sequer um tímido sorriso pra flor que desabrocha dançarina no jardim ou deixou que a brisa morna lhe beijasse os cílios e fizessem voar livres as mechas douradas dos cabelos soltos - é mais fácil viver de resmungos e não-ditos do que abraçar apertado as inconstâncias, e aprender vez ou outra com o dolorido das ausências. Cavando com as mãos compridas de unhas vermelhas roídas um buraco profundo e estreito, suspira cansaço e se deixa enterrar pela terra fecunda. Pra ver se um dia - quem sabe - vire raiz e renasça feliz; e seus hojes vazios-cinzentos desabrochem, enfim, em surpreendentes e coloridos amanhãs.


Sylvia Araujo

8 de julho de 2010

Fênix

Rasgou meus livros
Partiu meus discos
Arranhou os móveis
Quebrou o espelho
Juntou suas coisas
Nem um adeus

Dobrando a esquina
me ouviu sorrir
e lembrou que
esqueceu
de atear
fogo
em
mim
X

Sylvia Araujo

6 de julho de 2010

Semente

Ela vivia me dizendo que tinha asas - amarelas, enormes, emplumadas. Mas eu não botava fé. Nunca fui de acreditar em nada que meus dedos não pudessem sentir, ou meus olhos acompanhar. Se era mesmo alada, como é que não voava? Tanto céu por aí, dando sopa. Se fosse eu, dava rasantes por cima do verde do mar e escolhia as minhas estações preferidas, só mudando a direção do voo - norte-sul-além-azul. Um dia, lhe ofereci meu precipício mais alto - o maior dos buraco que trago no peito - só pra ver se ela se jogava lá de cima, corajosa, impetuosa, e flutuava. Mas nada. Ela me disse por trás de um sorriso, que saltar de cima de penhasco é suicídio, e quer mais é viver essa vida danada de boa e ser muito feliz. E disse ainda que as asas só funcionam mesmo na imaginação, quando a gente abre um livro, por exemplo, e vem dele um cheiro, um sentimento, que faz o coração ficar bobo e levantar do chão. Mas meu coração é pedra, eu disse a ela, pedra pesada não rola e nem sonha. E então, ela abriu a boca pequena e rosada e fez soprar lá de dentro aquele vento suave e morno de primavera em flor. E me fez brotar inteira - pétalas multicores me subindo aos montes pela cabeleira. Beija flores dóceis vinham me pousar nos olhos e tiravam levemente meu corpo do chão. Ela, bonita em seus montes de laços de fita, abriu suas asas compridas de sol e me levou pelas nuvens, bem longe dali. Lá, pertinho de onde a tristeza não mora e a beleza explode nos poros da gente, abri meus braços de penas e chovendo salgado, amanheci semente.

Sylvia Araujo

2 de julho de 2010

Pra puta que pariu

Vento na cara, a cabeça quase toda pra fora da janela e um sorvete de baunilha derretendo na mão. Exatamente essa foi a cena esdrúxula que me fez sentar ao lado daquele cara quase maltrapilho que escutava Roberto Carlos no último volume, num mp3 fodido de visor rachado e que ainda por cima fedia a cerveja choca. O mais inacreditável é que ele quase não se mexeu quando lhe dei um tranco na perna direita escancarada, como maneira educada de dizer chega pra lá, ô caralho! Fiquei intrigado, te juro. Quem é o retardado que meio dia - sol à pino -  um calor do caralho fundindo qualquer cérebro que efetue a mais mobral das adições, fica em pleno ônibus em dia de branco praticamente gritando "vou me agarrar aos seus cabelos, pra não cair do seu galope", enquanto aquele creme amarelado e espesso escorrendo em bicas pelos dedos caga a calça toda? Visão do inferno, né não? E ainda assim, com pelo menos doze opções de lugar pra sentar em paz, eu queria estar sentado ali. Você pode elaborar todas as teorias psicológicas embasadas em todos os estudiosos de mentes insanas que talvez nem tenham nascido, e com certeza não vai conseguir chegar a uma conclusão plausível. Nem eu. Nem ninguém. Porque é realmente impossível compreender o que pode atrair alguém feliz, bem sucedido, filho de pai e mãe equilibrados, carreira de administrador de empresas em plena ascenção em um ano e meio de formado, e um namoro de quinze anos sem qualquer tipo de estremecimento ou ruptura - e olha que eu só tenho 28 anos! - a um pulha desses. Um merda, um meia-boca, que provavelmente mora com os amigos em um muquifo qualquer, porque ninguém suporta nem merece limpar tanto vômito consecutivo nessa vida. Tô falando besteira? Acontece que esse filho da puta do André mudou a minha vida. Você deve estar aí se perguntando: peraí, como é que esse cara sabe o nome da figura? Pois bem, eu preciso te dizer uma coisa muito séria. A partir daquele dia que aquele cara levantou daquele banco cinza imundo, o cabelo todo desgrenhado por causa da ventania poluída, enfiou a mão gosmenta no meu ombro e falou foi mal aí, irmão, eu larguei aquele emprego de bosta, mandei todo mundo pra puta que pariu, troquei aquela anta por uma viagem de mochila pela Europa, tomei o maior porre da minha vida - tá, disso eu não me orgulho - e comprei um violão. Hoje eu te digo de coração, meu camarada: não tem nada melhor nesse mundo do que sentar com aquele merda numa praça, birita e cigarro do lado, sentir esse vento fedido na cara e tocar um blues até a lágrima cair.

Sylvia Araujo



PS: Pra conhecer a alma livre, que fez com que esse texto me brotasse inteiro de uma só vez, praticamente sem pausa pra respirar, clique aqui e aqui. Valeu garoto, você é bom! ;)

30 de junho de 2010

Neblina

Não, você não faz ideia do quanto é grande, do quanto eu sinto, do quanto eu quero e espero de nós. As tuas mãos nos meus cabelos, as tuas curvas entre os meus dedos, teu sol inteiro violando ávido os meus sentidos - um a um. Falta teu ar nos meus dias, amor. Me falta você. Dói feito punhal cravado no peito, esse torto amor reticente em tanta inteireza de entrega. Eu te amo louco, desvairado. E ainda assim, doído, parto. Refaço as malas que nem desfiz, e parto. Respiração suspensa, espero sempre que você se vire, que você me olhe, que você me peça que fique e te ame, desvairadamente te ame até o amanhecer. Mas você soberba e mulher segura, retoca com calma a máscara dos seus dias mornos e segue - intocável estátua de cera derretida dentro de mim. Hoje carrego a tua alma bonita em um porta retratos debaixo do braço. Tua imagem sorrindo naquele dia claro de sol é tudo o que resta do resto de nós. Cada vez que nos desatamos, envoltos em densa neblina, você leva contigo um pedaço enorme de mim. E nesse eterno despedir, anoiteço. Sozinho, estilhaçado, perdido pereço. Ando mil pedaços faltando, amor. Ando você inteira no peito. Ando sorriso amargo, coração cansado. Ando só - ando muito só com você aqui. Chove em barulho alto, folhas de outono voando, soluço engasgado. As gotas translúcidas batendo incessantes na janela dos olhos, são feito os poemas que te jorram em rios - madrugadas de lua. E meus braços se esticam no pranto da noite pedindo implorando teu colo, teus dedos. E com eles eu fico - horas e horas a fio - entregue e exausto dos nossos tantos nãos. Ninando meus beijos, ninando teu cheiro, adormeço abraçado ao seu travesseiro. E cantarolo baixinho aquela nossa canção, que por tanto tempo se fez ninho e hoje, nesse quarto opressor e vazio, é só, e somente só, solidão.

Quando apenas restam vestígios, há que encaixotá-los com carinho. Depois o tempo, feito pó, vai amarelecendo o que restou, enquanto lá fora sopram as aragens das estações.

Sylvia Araujo



PS: Do comentário lindíssimo do AC, do Interioridades, lá no Abundante-mente, surgiu o final desse texto. O Link em nuvem fofa, bem aí em cima.


28 de junho de 2010

Indistinguível

Inerte. As mãos negras e disformes boiando flácidas em sangue frio. Sentia um fiapo de vida latejar no pulso esquerdo partido, e rosnava por dentro. Não era dor, mas ódio o fio tênue que mantinha seu coração cansado batucando frenético dentro do peito. Noite fria em beco escuro não é tempo de ficar estirado no chão feito dejeto. Ainda assim, lá estava ele abraçado ao meio fio, aos restos de madrugada pútrida e às ratazanas famintas - indistinguíveis. Sentia no rosto um constante fisgar, e do olhar em horizonte fugia apenas um vislumbrar leitoso de imagens retorcidas. Ao fundo, um poste apagava e acendia - ritmado. Ou seria uma lanterna? Ou seus tantos desmaiares? Tentou mover as pernas e não conseguiu. Em pânico, imaginou o revirar do pescoço, mas eram apenas os globos girando nas órbitas e a palavra queimando feito incêndio na garganta. Nem um som se ouvia, além das gotas gordas que escorriam dos seus olhos vítreos e pingavam quentes no chão de concreto. Chovia através das pálbebras inchadas, um gosto salgado fazendo arder os cortes profundos nos lábios. E ele ali, inerte, implorando emudecido ajuda ou morte. Como num filme, Margareth lhe saltou à frente em batom vermelho e seios fartos. Dançava linda, enevoada pela fumaça da cigarrilha ao som de um blues qualquer - olhos fechados. Ela sempre fazia isso enquanto ele apertava o espartilho ou afivelava o salto. E lhe enxugava as lágrimas com lenço de seda, quando ser mulher aprisionada em corpo de homem virava fardo pesado demais e lhe anoitecia. Margareth era feliz com o que se transformara e talvez isso a tenha salvado da solidão. Enquanto ele, mazela pura, expurgava sozinho naquela sarjeta imunda, o veneno amargo que o consumia. Já não sofria. Com um beijo doce da única e fiel amiga, evaporou enfim em uma paz lilás.


Sylvia Araujo




PS: Tomei emprestado o lilás da evaporação bonita do Marcelo Novaes, no incrível Prosas Poéticas. O link logo aí em cima, de mãos dadas com a paz.

23 de junho de 2010

Borrão

Nossas mãos se abraçaram. Apertado, feito menino com medo de escuro - não me envergonho. Aqueles cabelos compridos - fatia de franja beijando a bochecha com displicência - acalmavam meus nervos. Nunca na vida provei boca tão doce, mesmo quando cuspia impropérios. Ela era eloquente. E dia claro - soluço raro nas minhas noites insones. Seu olhar me entorpecia inteiro quando vinha lânguido, cheio de braços a me engolir. E o meu olhar suspirava por ela. Todas as manhãs eu derretia. Tinha dias acordava espinhos, e mesmo enraivecida cheirava a rosas - que tipo de magia ou encantamento tinha emanando pelos poros ou vertendo por entre as pernas, eu não sei. Só sei que eu era dela. Inteiro dela, enquanto me quisesse ao meio. Acontece que Marina era tanto - e tão tudo de uma vez só - que metade era muito pouco pr´aliança de eternidade. E derramamos lágrimas no fazer das malas, e dobramos juntos as meias brancas, e enchemos a cara de vinho tinto antes de fumar, cúmplices e esvaziados, aquele último baseado. No aeroporto - seu all star vermelho roçando de leve as minhas havaianas sujas, suas mãos suadas mastigando os meus dedos frios, eu indo pra perto e ela pra longe de mim - eu tive a absoluta certeza de todas as nossas incertezas. E desse momento em diante, a ausência dela choveu tanto dentro de mim, que o meu coração borrou.


Sylvia Araujo




PS: Poeta de mão cheia - das pequenezas que se sabem inteiras - Geraldo Barros, do lindíssimo Sem Catraca, empresta seu verso-chuva às minhas letras. O link, como sempre, borboleteando lá em cima.

21 de junho de 2010

Dos espantos

Na hora exata em que seus olhos vivos se preparam para se pôr - nem um minuto a mais a escorrer pela noite - Maria sorri em lábios de cereja madura, no alto de um galho esparramado de arbusto. Dançam serelepes - embonecadas em vestido de chita - as lembranças de um hoje feliz, embalado pra sonho em folhas de outono. Sonho de menina em travesseiro fofo de penas, é coisa que enche o peito e faz doer de ausência coração de adulto - por isso ela não usa salto. Não é que não queira ter abraçados os pés descalços com as tiras e as fivelas da estação. É que não vê mesmo sentido em crescer mais cinco centímetros que seja, além daqueles que forçosamente fazem sua pureza escorrer, cascateando pelas mãos. Maria "é adivinhação de criança, quase ciranda incandescida por uma estrela".
Faz tempo que aboliu os espelhos dos dias. Passou a medir sua meninice pela quantidade de laços de fita que cabem alvoroçados no meio dos babados fartos - encompridados de propósito até as canelas finas. Pra evitar que suas pernas esguias se descompassem e esqueçam da música que escoa do tempo, todas as manhãs ela pega pela mão as palavras, e as leva pra dançar. Assopra com força ao vento forte do inverno todos os porquês que carrega no estômago - é essa sua fome de espantos que faz com que todos os sentidos lhe dêem boa noite, todas as noites escuras sem lua. Ela não vive sem eles. Rodeados de cheiros, sons, cores, gostos e minutos felpudos, seus dias nada mais são do que presentes enormes e surpreendentes, embrulhados com o papel mais brilhante de todos, à sua espera em cada amanhecer, na beirada da cama. Repletos de matizes e belezas, cheinhos de vida e alegria, eles se entregam inteiros a ela. Maria, bonita que só, carrega bem dentro um coração de criança.
E é só por isso que ela sonha tão pequeno-enorme assim.

Sylvia Araujo



PS: Com um beijo na Luciana Marinho, do Máquina Lírica, que me soprou a ciranda incandescida, dando vida e poesia à minha Maria. O link dança no meio do texto, de mãos dadas com as outras letras bailarinas.

18 de junho de 2010

(In)conjugável

As palavras me cicatrizam, instantâneas feito ópio. Ou talvez uma dose cavalar de morfina, que amortece displicente os lobos cerebrais - certeira como a lágrima que se arremessa impávida do alto da face, pouco antes do inevitável endurecer do coração. Não existem meios de me desnudar dos medos e anseios, sem permitir que frases inteiras-atropeladas me irrompam libertas do útero em chamas. Mesmo que eu as mantenha militarmente algemadas aos sentimentos mais inúteis, elas me jorram altivas e incontestes. Não há como manter o respirar cadenciado sem que a maldita tela, de algum maldito computador, seja lentamente preenchida pelas dores e os amores que me invadem e escorrem incessantes, todos os dias.
Escrever é minha libertação. E a mais sufocante das clausuras. Minha incoerência e militância. É ao mundo que esbravejo febril os gritos lancinantes, desesperados e insanos da fera enjaulada em seu próprio peito. É ao outro que suplico cuidado com o que me vaza e esvazia - porque isso é tudo o que me resta. É lá - bem lá no meio das tantas folhas soltas e desconexas que me revelam - que sucumbem exaustos os poucos pedaços mais preciosos de mim. Os que me são e os que me ausentam. E ainda aqueles que - não sendo nem um, nem outro - vivem de almejar uma identidade, qualquer que seja ela; como um vulto que aguarda ansioso o breve mas caloroso aceno, sentado imóvel diante da janela de um trem que parte sem olhar pra trás. E assim, como quem se resigna diante de um mal irremediável, segura constato que é, sim, no contorno delicado e dolorido dessas letras latejantes que me encontro - feito rosto que reconhece as suas próprias marcas em olhares alheios. E que, neste materno aconchego de ninho aquecido pelos verbos mais inconjugáveis - invariavelmente - me perco. Com os poros famintos e o peito escancarado.
Sempre sorrindo e sangrando.
Di la cer  ando.

Sylvia Araujo




PS: Com um beijo enorme na careca brilhante do Sara-Mago das palavras. Ficamos aqui abraçados com as suas deslumbrantes letras e com a saudade apertada dos muitos mundos que ainda estavam por vir. Ainda bem que palavra alada é imortal.


"Se tens um coração de ferro, bom proveito.
O meu, fizeram-no de carne, e sangra todo dia."
José Saramago

10 de junho de 2010

Technics

Você não tem ideia de quanta coisa eu superei, abdiquei, passei por cima, fingi que não vi. Dizem que o amor é assim: a gente abre mão de tudo pra tentar evitar o inevitável. Eu já nem me importava mais com as suas calcinhas penduradas na torneira do box, te juro. Nem com os absorventes usados enrolados na beira da pia, ou a escova de cabelo entupida de fios compridos e dourados. Achava até bonito - acredita? - aquele sol brilhando pra mim por entre as cerdas pretas e finas, todos os dias pela manhã. As camisetas surradas e as cuecas sem elástico que eu adorava usar - antes de você liquidá-las - já nem me lembrava mais. E a caixa de ferro do whisky 12 anos, que abrigava a minha coleção de botões oficiais? Tudo bem que tenham virado depósito de esmaltes multicoloridos e apetrechos de manicure que você nunca usou - minhas poucas coisas ficam bem em qualquer lugar. Não me incomodava nem um pouco que todos os cabides do meu armário estivessem ocupados pelos seus vestidos. De verdade. Até consegui compreender que eles precisavam mesmo de mais espaço, e as minhas calças gastas não. Esvaziei as prateleiras dos meus enfadonhos livros de Economia para que os seus sonetos pudessem respirar melhor, e deixei de lado os meus planos - todos eles - pra satisfazer os teus caprichos. Alisei com progressiva os teus cachos largos, te levei na primavera pra Veneza e te enchi de sapatos de toda sorte - apesar de você só ter dois pés, como qualquer outro mortal. Estava mesmo tudo bem, Cecília, até que você ultrapassou o inultrapassável. Eu sempre te disse que você podia tudo, e que eu te amava com todas as minhas forças - talvez tenha sido esse o meu maior erro - mas que nunca, jamais encostasse na minha vitrola. E você, num dos seus ataques histéricos de menina mimada que não ganhou de presente a boneca do comercial - olhando desafiadora no fundo dos meus olhos incrédulos - enfiou o dedão imundo na ponta delicada daquela agulha. Por isso, minha querida, não há mais o que lamentar: engula esse choro pobre, pegue as tuas coisas vazias e vá se envenenar com cds baratos em outro lugar. Porque o meu Baby 1983, aqui, nessa Technics original, você não escuta nunca mais.

Sylvia Araujo

5 de junho de 2010

Gota

Sai despenteada e apressada. Primeiro a filha na escola, depois o filho na natação. A Ioga fica pra depois. Volta pra casa, coloca a roupa na máquina, lava a louça da pia. Vassoura na sala, pano nos quartos, desinfetante no banheiro. Hora de buscar o filho na natação. Passa o uniforme, dá banho, comida, penteia os cabelos, deixa na escola com um beijo e um eu te amo. No ponto de ônibus lembra que precisa estender a roupa. Volta mais uma vez, pendura a roupa na corda, coloca as panelas na geladeira e, no portão - no exato momento em que as chaves caem no chão - percebe que está de chinelos. Verdes limão. Com a maquiagem já derretida entra de novo e coloca os saltos. Olha no relógio, já deveria estar na reunião. Desiste do ônibus, pega um táxi. Chega atrasada, dá boa tarde, escuta, organiza, propõe, resolve, indica. Fica aflita. É muita coisa e não há tempo. Delega, entrega e sai correndo. Hora de buscar os filhos na escola. Pega um ônibus, vai em pé. Hora do rush, engarrafamento. Abre um livro e vinte páginas depois desce na esquina. O salto quebra - estava demorando. Tira os sapatos, joga na lixeira e vai descalça. Pega os filhos, um beijo em cada um mais dois eu te amo, como foi o dia. Duas mochilas, mais bolsa de compras, laptop e pasta de couro. Quase não dá, mas tem que dar. Prepara a janta, ajuda no dever de casa, dá banho, conta uma história de dragões e princesas pra agradar os gregos e os troianos que dividem o mesmo quarto. Mais um beijo em cada um, dois eu te amo e um boa noite, durmam com os anjos. Apaga a luz. Respira. Descalça, caminha sem pressa até a cozinha. Abre a garrafa lentamente e escuta atenta o barulho do líquido estalando os cubos de gelo no fundo do copo. E aquela gota - não a mesma, outra - amarelada, reluzente, abrindo caminho pelo corpo transparente do vidro, caramujando em rolamentos circenses quase chegando ao rótulo avermelhado; aquela gota inteira, insistente, que magicamente a transporta para outro lugar. O lugar das maravilhas que, de tão mínimas, se tornam quase invisíveis aos olhos do tempo que escorre. E ela agradece por mais esse micro-poema que orvalha diante do seu rosto cansado. Porque enquanto a gota - aquela, não outra - estiver serpenteando garrafa abaixo e seu coração se mantiver atento à ela, sua vida já valeu a pena. E o amanhã será sempre outro dia.

Sylvia Araujo

30 de maio de 2010

Pra ver Mateus feliz

Pra ver Mateus feliz, basta um sonho. De padaria mesmo - doce de leite caseiro escorrendo pela fenda funda açucarada. Seus olhos grandes cintilam com o papel manteiga e a primeira coisa que faz quando recebe o embrulho nas mãos é abri-lo com toda a delicadeza e lamber com gosto o doce grudado na folha branca. A saliva escorre.

Pra ver Mateus feliz, basta um gato. Vira-lata mesmo - uma paleta inteira no pelo curto e um rabo grosso de espanador. Suas mãos pequenas afundam no pescoço magro do bichano dócil e não se sabe ao certo quem é que ronrona baixinho - o acarinhado ou o acarinhador. Seu colo estreito vira cama quente e sua voz pequena cantiga de ninar. O coração aquieta.
Pra ver Mateus feliz, basta uma pipa. Preta e branca mesmo - rabiola farta de jornal de ontem e carretel inteiro de linha vermelho-vivo. Suas pernas finas correm pela rua mansa, braço esticado e boca seca, testa franzida em concentração. Domingo é dia de dançar com o vento. A tarde toda é festa no céu - pintado inteiro, arco-íris alado. O olhar estreita.
Pra ver Mateus feliz, basta uma folha. Caída mesmo - pedaço seco despencado ao chão e carregado das histórias do céu. Seus dedos ágeis imprimem vida ao pedaço morto; um assopro e o marrom dourado se transforma em ave e voa de volta até o alto da árvore. Sua intenção não é que ela renasça, mas que vire ninho - casa de folha pra passarinho. O sorriso dança.
Pra ver Mateus feliz, basta o tudo. Cheio de nada mesmo - pra poder enchê-lo do que quiser. E não cabe carro, nem apartamento porque as asas da sua imaginação ocupam todo o espaço do coração. E o que sobra é mesmo só para o amor, que sempre dá um jeito de se espremer entre uma rosa e um bocado misturado de cor.

Sylvia Araujo

27 de maio de 2010

Des-ânsia

Amanheceu bonita. Dia quente rompendo no peito, um sol inteiro iluminando afobado a pele fina e clara do rosto. Do outro lado da janela um vento cortante bailando anunciante o longo inverno - em tempos de La Niña não há nada mais a se esperar além das loucuras cometidas pelas estações. Há quem diga que assim enlouquecemos junto. Nada mal quando pensar em loucura é quase como uma abolição da escravatura. No aconchego do lençol macio cheirando à alfazema, sacudiu os pensamentos e esticou as pernas. A cama amolecida pelas noites revelando a marca intacta do corpo rijo entregue aos sonhos. Aquelas tantas lembranças, que - no fim - acabam sempre virando memórias pra dentes. A tatuagem dos amores já cicatrizados na fronha florida já ardeu mais. Hoje revela. E ela sorri confiante, do mesmo lado que tantas vezes foi invadido pelos mares dos olhos. O sal deixou nódoas no tecido amarelo e não há Omo-qualquer-coisa capaz de removê-las. Melhor que fiquem ali, feito foto de obeso emagrecido em porta de geladeira. Pra manter a saúde, tomou por hábito comer os nomes pela manhã. Trinta e três mastigadas e os nutricionistas garantem uma perfeita digestão - é o que dizem. José. Anselmo. Antônio. Lauro. Pedro. Maurício. Renato. Fernando. Sem nenhum líquido gelado entre um e outro pra ajudar a empurrar as dores garganta abaixo - dá barriga, dizem também. Pra evitar que a gastrite vire úlcera, melhor seguir as recomendações médicas. E ainda misturá-las com mel. Essa história de viver azeda já lhe causou transtornos demais. E escassez de poesia. Antes evitar a recaída que deitar todos os dias com os espasmos dos sexos que já lhe fizeram flamejar as curvas. Melhor compreender que o amor é logo ali, e não nas palavras anoitecidas dos dias que despencaram sem vida com o surgir da lua das mortes anunciadas. E deixar-se rodopiar de mãos dadas com o sopro frio que invade a nesga da janela entreaberta, enregelando os amores idos - nunca na espera - mas coração sempre aberto pro que há de vir. Porque borboleta parece flor que o vento tirou pra dançar. E as suas asas - na des-ânsia dos sentimentos - floriram enfim multicores. E estão mais que nunca prontas pra bater. E amar.


Sylvia Araujo




PS: Esse texto nasceu depois de ter lido o verso lindo entregue pela Renata, num dos tantos delicados posts dela no Estado de Entrega. O link está voando feito florboleta bem ali, no finalzinho das letras. Juntinho com todas as cores do amor - que há sempre de vir.

22 de maio de 2010

Azul

Olhou para o céu estarrecida - aquele azulado uniforme acordado inteiro em teto sem trincas, nem uma nuvem sequer para estremecer tanta lonjura e autoconfiança. O azul não tem medo - alguém sugeriu um dia. Não se sabe porque, mas ele nunca tem medo. Sacudiu em espasmos os ombros ossudos ao mesmo tempo em que eriçavam voluntariosos os pelos finos dos antebraços. Aquela brisa constante soprando incessante de dentro pra fora. Aquele gelo nas palmas das mãos. E nas solas dos pés. O corpo inteiro sacolejando horizonte, uma sensação irreprimível de sem fim embalando o estômago mareado. Imensidão sufocante amordaçando a garganta seca. Não caber em si - e ter consciência de sua pequenez interior - fazia o tecido esticar até o limite. Limiar inconteste é a linha tênue entre o prazer e a dor de ser em si. E nada além. Sentiu um a um cada poro rompendo, explodindo em eufórica libertação. Inspirando profundo a magnitude daquele instante - peito transbordando - expirava medo. Escapava-lhe das narinas o sopro quente do pavor. O que fazer, meu deus, com tanto azul? E aquela infinitude toda que sempre que se faz presente, lhe arranca pedaços com os dentes afiados e lhe deixa buracos enormes no peito? Não cabe. Ela sente que não cabe tanto destemor, tanto azulado destemor no seu coração cinza. Duro e cinza. Medroso e muito, muito cinza. Aquela cor maldita, aquele matiz de beleza tão singular e íntegra invadindo assim seus olhos negros e encharcando de música inteiro o frágil corpo-invólucro. Cansou de vazar. Exauriu de escorrer. Então, num ímpeto desesperado de matá-lo, extinguí-lo para que pudesse viver enfim em paz alimentando de nãos seus dias - como todos os dias - cravou enérgica a cintilante tesoura dourada afiada bem no meio do arco da íris opaca. E no exato momento em que tudo perdeu a cor, suspirou profundo e sorriu de lado. Desde aquele fatídico dia, o tão imaculado e imenso azul inteiro, que tantas vezes lhe tirou o sono, dormiu. Enegrecido e vencido, sucumbiu.


Sylvia Araujo



PS: Note alheio sequestrado = texto novo. rs

19 de maio de 2010

Queridos,

Estou novamente sem computador. Por algum motivo que ainda não descobri, a peça que foi trocada queimou de novo. Vou ficar um pouco mais ausente, aparecendo por aqui no tempinho em que conseguir ir até uma lan house - quase nenhum. rs Até lá, sintam-se aconchegados pelas republicações um pouco mais recentes da minha abundante-mente. Quando voltar, beijo cada um com o carinho que merecem. Prometo.

Beijocasmuitas

3 de maio de 2010

Hoje é dia

Hoje é dia de beijar o sol que açoita inquieto a janela da alma - seus dedos quentes de raio me arranhando sutil a pele arredia. Um gosto de verão aflorando primaveras no céu estrelado da boca. Dentes de leão me brotando delicados pelo nariz; asas nos pés pra levitar além. Hoje é um dia bom pra lamber a música que escorre do chuveiro quente - e derramar junto. Mastigar demorado a melodia que suspira na água fervente da chaleira. Dançar com as notas sem compasso que tilintam no molhe de chaves - três pra lá, cinco pra cá, mais um bocado de variações inconstantes. Quem me espreita a sonhar assim imagina que deve haver algo de especial nessa segunda feira branca de maio. Se não muito, apenas um susto de especialidade. Mas não. Hoje é mesmo um dia como outro qualquer. E talvez por ele ser assim, igualzinho a todos os outros, é que se me criou essa necessidade incontrolável de me permitir ser invadida. Tocada, violada. De ter um dia inteiro rotineiro digerindo bem dentro do estômago, pra que tudo o que nele habita me alimente as células famintas do corpo - e me faça vida ensolarada. Assim, ansio que o hoje me vista com o cheiro doce do plástico bolha que embala as horas - maneira poética de tê-las tiquetaqueando aqui dentro. Desejo mais: que me invada o gosto acre de toda a minha melancolia, pra que eu possa adocicá-lo com a maciez das frutas que nascem em terras onde eu nunca pisei. Espero ainda paciente que brotem em meus olhos, vigorosas, todas as flores multicores que chovem das árvores no outono. E que me seduzam os amores. Ah, os amores - todos eles, cada um deles em mim. Que o mar me tome inteira pelos ouvidos - colados em uma concha qualquer. E da lua, peço apenas que me entupa das suas fases, pra que eu aprenda a me entregar suave ao minguar, antes de crescer e brilhar, e brilhar mais ainda. Eu quero tanto, e tanto mais, porque descobri - olha só, que maravilha - que o hoje é o meu caminho. Me dei conta dia desses, olhando um casal de velhinhos de mãos dadas pela rua, que o laço de fita quem põe na vida sou eu. E é por esse pouco tão muito que decidi que agora onde eu vou, vou pra ser estrela. E levo na mala comigo cada minuto fantástico que borbulha. Além do miar de um gato, um kiwi maduro e um coração feliz.



Sylvia Araujo





PS: Voltei! :)
Beijocas floridas.

26 de abril de 2010

Dos tantos outros em mim

É do corpo que me escapolem as palavras. Fugidias, escorregam dele inteiro - cada poro estrapolando os sussurros incontidos de ser outro, dentro. Nesse momento uno, sou o que não sou; esgotada em meio a milhões de tantos outros sentires de tanta gente que me povoa, dentro de um peito aparentemente inóspito - oásis e reflexo caleidoscópico. Não escolho a dedo as noites insones em que me esvoaçam das falanges curtas os desejos que não desejo. Menos ainda os dias cheios em que me rodopiam ensandecidos os seres tantos que me habitam. São eles, donos de si - tão, tão além de mim - que me tomam inteira e me ultrapassam léguas; demasiadas lonjuras que tateio cega. Me escancaram despudorados seus próprios mundos, distantes, alienantes, matérias em si mesmos - alheios. E eu escrevo. Não soluço odes de dor. Me riacham as meretrizes gotas janelas abaixo e umedecem o rascunho em que tecem a si mesmas - sem qualquer mínima interferência minha. Meu peito cala e se anula - desnudo receptáculo adunco de poréns de outrem. Nessa hora estanque, não sou. Sou além. É a vida que pulsa dos cheiros dos corpos que me moram inescrupulosos, sem quitar o aluguel mensal. Inquilinos mal educados que não pedem licença e ainda abusam da hospedagem - esses tantos personagens - sem um único e reles agradecimento sequer. Sentimentos que desconheço e que ainda assim me entopem e vazam - sem a dignidade íntegra dos que são em si - e ainda me arrancam a cada verbo dos meus próprios braços. Tão frágeis braços que mal me acolhem os cacos. Não há no mundo, eu bem sei, solidão maior que ter a casa cheia e se ausentar de si mesmo por falta de espaço. Isso acontece e se repete em mim sempre que me ocupam os cômodos mundos tantos, outros-estranhos. E quase nada me resta para ser, além de tudo o que nunca fui nas tantas e tantas palavras que me despedem todos os dias - de dentro me saltam sem uma gota sequer de mim em si. E ainda assim, arrebatada por um sentimento de inevitabilidade incorruptível, me entrego inteira - mesmo que sempre aos pedaços. Carrego nas costas e no peito todos os sentimentos do mundo. E isso, enlouquecedoramente, me faz viver. Então eu vivo. As tantas vidas dos tantos outros - aqui, bem dentro de mim.


Sylvia Araujo





PS: Queridos, estou sem computador. Esse post foi publicado através de um note sequestrado. rs É provável que até ser resolvido o problema da minha máquina, minhas visitas aos jardins de vocês não aconteçam, e as postagens por aqui sejam escassas, ou nulas. rs Assim que voltar me comprometo a beijar cada um, com todo carinho do mundo, até lá, fiquem com os meus outros, e escrevam bastante para que eu tenha muito o que ler e me deliciar quando retornar. Beijocas enormes e abraços super apertados.

19 de abril de 2010

Véu

Num repente, as janelas batem. Estremece com fúria a alvenaria do dentro. Quando é tempestade no fundo do peito, as nuvens se alojam na beira dos olhos. É curiosa a maneira como recobrem a retina e embaçam a visão - meio véu, meio teia - e me escurecem. Com a beleza do som do silêncio dos meus dias de chuva aprendi a ser noite. Quando em vez me embalam cantigas de morte. Sentimentos vazios, olhares perdidos - ando cheia deles. E mesmo que não haja vida nas palavras duras que me habitam hoje, ainda assim deixo que dancem. Escrevo porque a letra que me escorre aquece. Quando me toma pela mão e me arrasta insistente pra dentro das minhas entranhas, onde adormecido - por ora - mora o mais belo sol, me doura a alma. Com um sopro de brisa. E faz com que brotem as mais delicadas sementes, que planto sempre que em mim é primavera. A lágrima rega. E é por isso que eu chovo. Para que enraízem no terreno fértil do meu coração os cheiros mais doces e as mais belas cores que existem em viver. E é só por isso que eu vivo. Mesmo quando o breu do âmago faz revirar o dolorido estômago ulcerado eu sinto, e sinto tanto, que nada nesse mundo vai conseguir arrancar dos meus poros a resplandecência do azul inteiro de um céu de brigadeiro em pleno janeiro.
Ainda é abril.
Até lá, tro-vejo.

Sylvia Araujo

18 de abril de 2010

Chuva

Jorge era um rapaz sisudo. Desde criança nunca foi de muitas intimidades. Falava pouco, não contestava as regras e raramente se aventurava fora do seu próprio mundo. Passava horas trancafiado no quarto, sem que ninguém ouvisse a sua voz. Na adolescência, se tornou uma pessoa ainda mais fechada. Laura ficava intrigada com a falta de brilho do filho, percebia que ele não tinha amigos e estudava demais, mas nunca quis interferir. Achava que respeitando a sua personalidade introspectiva e não lhe fazendo perguntas demais, conquistaria a sua confiança - além de poupar a si mesma o desgaste com as intermináveis e infrutíferas discussões familiares. A relação dos dois sempre foi extremamente superficial. Mãe solteira, Laura trabalhava à exaustão. Viajava dias seguidos, vivia no telefone, e quando estava em casa costumava abusar de soníferos fortes, para apagar por horas seguidas. Numa casa confortável, mobiliada com esmero, mãe e filho eram como estranhos que dividiam o único banheiro. Num dia de cansaço extremo, Laura encerrou o expediente mais cedo. Quase chegando em casa, notou na esquina uma movimentação diferente, pessoas aglomeradas, gente nas janelas, e no meio do asfalto estreito homens e mulheres criavam um engarrafamento fora do normal. Percebendo que a confusão se concentrava na frente do prédio de dez andares, apressou o passo no ritmo do coração. A ambulância parada em frente à portaria, com as luzes vermelhas girando sem parar, fez seu estômago embrulhar. Quando abriu espaço entre a multidão e viu o filho estendido no chão, sua respiração parou. Piscou uma, duas, três vezes sem conseguir sair do lugar. Jorge estava nu, de bruços, cheio de marcas cicatrizadas de cortes fundos nas pernas e nos braços, com os cabelos lisos espalhados sobre uma poça enorme de sangue emoldurando seus olhos abertos. Com a alma dilacerada e o coração vazio, Laura ajoelhou ao lado do filho e contou a ele como foi o seu dia. Perguntou da escola, dos amigos, dos filmes e músicas que ele mais gostava e disse - enquanto afagava seus cabelos molhados - que iria comprar batatas fritas, para comerem juntos na mesa da sala. Com as lágrimas pesadas escorrendo pelo rosto, a mãe abraçou apertado o corpo frio e franzino do filho. E até o momento em que o chão úmido sumiu debaixo dos seus joelhos e seus olhos febris não viram nada além de uma nuvem branca muito densa, ficou repetindo e repetindo e repetindo incansavelmente: eu te amo, meu filho.


Sylvia Araujo

15 de abril de 2010

Eco

Aqueles nossos beijos cor de sangue. Ainda guardo todos, feito relíquia, aqui no peito encardido. Era tudo tão azul quando teus sorrisos me desejavam bom dia, do meio daquela cara amassada - olhos famintos, mãos desenhistas. Teus dedos rascunhando as minhas curvas. Meus olhos se entregando aos teus, enquanto a tua respiração branca ritmava a minha aceleração alaranjada. Aquela tua leveza bossa nova que sempre conseguia cadenciar meu rock n' roll. Só o teu silêncio me acalmava. Só o teu abraço me fazia ninho. Você não tem ideia do quanto a tua ausência me arde. Do quanto me queima esse travesseiro vazio. Do quanto me estraçalha não ter que pular teus sapatos no meio da sala todas as noites. Eu adorava quando as tuas palavras me violavam, aquele jeito quase sem som de dizer eu te amo - só teu. Teus dias inteiros distante, sem sair um minuto de dentro de mim. Eu te suava. Eu te suspirava a cada meia hora. Nos intervalos dos meus devaneios frenéticos de desamor, eu te amava muito. Eu te amava tanto, que te queria pedaços, pra poder te engolir inteiro e sentir teu suco enchendo a minha boca - feito maçã. Você não sabe o quanto eu chovi quando aquela porta bateu. Nem um adeus, ou fique bem, ou até um dia. Como você pôde fazer isso com as nossas juras? Como você pôde rasgar as nossas cartas, arranhar assim meu peito, me cuspir na cara, como? Eu sinto tanto a tua falta. Depois de tanto tempo ainda escuto aquele eco que vinha de ti - malas nas mãos. Você ficou oco com a minha aridez. Eu queria te pedir não vá, te suplicar fica, eu queria gritar que você era o meu mundo, o meu ar, a minha vida, mas o grito não veio. Eu queria, queria muito deixar tudo aquilo sair, mas o grito simplesmente não veio. Ele ficou guardado em mim, perdido no meio de tanta coisa que eu tinha pra te dizer, mas não disse. Eu quis te sussurrar que meus hojes eram futuro ao teu lado. Que sempre era mentira quando eu te falava que não nasci pra ser mãe. Que eu me sentia segura nos teus braços. Que você era poema escorrendo pelos poros. Que teu sorriso iluminava meus dias e os teus soluços me enchiam de ternura. Mas não deu tempo. A tua sensibilidade não suportou a minha dureza. Eu te feri. Enchi teu coração de espinhos e as tuas mãos de um vazio que era todo meu - e não teu. Porque você sempre teve um mundo inteiro nas mãos, e eu te arranquei tudo. Te virei do avesso, te tirei o chão. Te fechei os olhos. Te aturdi. Eu sei. Mas eu fiz tudo isso porque tive medo. Eu morria de medo do sentimento que me tomava quando a tua mão segurava a minha. Tinha pavor da tua fortaleza doce que sobrepunha a minha fraqueza bélica. Você era mar no cio e eu era rio - aprisionado pelas margens secas. E hoje eu fico aqui derramando todas as lágrimas que eu engoli nas nossas brigas mais bobas. Desentortando todas as esquinas que eu criei pra fugir do teu amor. Engarrafando toda a poesia tua que ficou gravada em mim, pra beber gole a gole e me embriagar de um você que eu - insensível - consegui destruir.

Sylvia Araujo

13 de abril de 2010

Paternidade

Meu nome é João dos Santos Silva e é meu primeiro dia aqui. Tenho 32 anos e sou um viciado em cocaína e álcool. Mas o que me trouxe mesmo foi o crack. Eu fumei do cachimbo ontem pra ter coragem de desenrolar umas paradas lá. Só que deu tudo errado e eu entrei na fissura. E o lance é sinistro, braço.  Acontece que eu sou pai de dois filhos. Eles são a única coisa que tenho nessa vida. Eu não posso deixar que a minha família acabe de novo, Dona. E é por isso que eu vim.  Já que todo mundo aqui é enrolado com alguma treta, eu vou falar. Até porque preciso tirar essas coisas daqui de dentro de mim, sabe qual é? Minha mãe morreu de álcool, Dona. É o que diz lá no papel. Mas a verdade mesmo é que os canas meteram nela, até ela morrer. Eram mais de seis. Eu e meus irmãos vimos ela estrebuchar lá no chão, mas a gente não podia fazer nada, senão apagavam a molecada também. Meu pai bateu as botas no xadrez, depois de uns bagulhos errados que ele fez - pegou 40 anos. Meus dois irmãos morreram de bala, pelas costas, um com quinze, outro com dezessete, maior vacilação. Tem um lá que eu nunca mais vi. Botaram ele pra correr da comunidade porque se meteu com a mulher do chefe. Aí já viu. Minha irmã se enrolou com a bandidagem e acabou no meio dos pneus. Só sobrou uma, Dona. A Neuza é de Jesus. Eu não acredito nessas porras de religião, Deus, o caralho a quatro, desculpa aí os palavreados, mas só falando assim. Que Pai é esse que te tira tudo que você tem? Pra mim isso é padrasto bebum. Aí, sabe como é, eu entrei pra vida louca, fiz um monte de parada errada, até que eu conheci a Sônia. Ah, Dona, nega bonita, a Sônia... Passista da escola, cheia de ziriguidum. E ela me deu minhas duas jóias. Um casal. Cada um mais lindo que o outro. Aí eu comecei a ter medo dos lances darem errado, e eu morrer de cano, ou os canas invadirem a minha residência e maltratarem meus pequenos, sabe como é. Os caras não querem saber se é criança não. Saem largando o dedo mesmo. Por isso que eu fumei a pedra ontem, pra levar uma grana forte e sair dessa vida de erro. Mas aí a parada melou e eu fiquei nessa fissura sinistra, e hoje, quando eu tava com o cachimbo de novo na mão, pensei aqui comigo, pára com isso cara, deixa de ser vacilão, mané. Vai lá na reunião do bagulho, pra ver se tu sai dessa. Porque eu te digo uma coisa, Dona, eu vivi sozinho, e a vida me deixou muita cicatriz pelo corpo e pela mente. Mas meus filhos essa filha da puta não vai marcar não. Meus filhos não.
Sylvia Araujo 




Nota: Este texto foi escrito com resquícios das inúmeras impressões que me impactaram durante a narrativa absurdamente realista do repórter Caco Barcellos, no livro Abusado.  A edição, com mais de 500 páginas, conta em minúcias detalhes da vida de pessoas que viviam em um dos morros mais violentos do Rio de janeiro na década de oitenta. Um excelente trabalho do jornalista, que retrata com uma fidelidade dolorida as relações sociais, pessoais e profissionais de todos os personagens inseridos na guerra do tráfico nesta época. É a realidade nos escarrando na cara. E o máximo que podemos fazer nessa hora, é limpar a saliva do rosto com as costas das mãos.
Saudade é afago no fundo do peito,
cheirando à retrato retido na fonte.

Sylvia Araujo

11 de abril de 2010

Olhares

Bela acabou de fazer seu almoço às três. Experimentou uma receita nova, usando ao léu todos os temperos cheirosos do armário. Comeu com o nariz, antes de levar a primeira garfada à boca. Terminando a refeição, deu onze passos até a cozinha e pousou a louça na pia. Mais dezesseis passos e estava tateando as gavetas do armário. Abriu a terceira - aquela que guardava os vestidos fluídos de flores - e pegou um de alças. Escolheu com a ponta dos dedos a sandália aberta de tiras de cor neutra, que ficava do lado esquerdo da sapateira. Penteou os cabelos com as mãos, alisou o tecido fino no corpo, pegou a bolsa pequena e chamou Gentil. O cão já esperava alerta na porta, com a guia na boca, e balançou o rabo ao som suave de sua voz doce. Bela acarinhou as orelhas peludas do pastor, enquanto encaixava o couro macio em seu peitoral maciço. Aproveitou o dia de folga pra fazer uma caminhada e, como já imaginava, assim que pisou na calçada foi abraçada pelo toque quente dos raios de sol e pelo cheiro das flores - que suspiravam primavera. Entrou na sorveteria da esquina e pediu um sorvete de amoras de sobremesa. Ela adorava as frutas vermelhas. Mesmo sem nunca na vida ter visto esta cor, todos os seus sentidos sempre a levavam para ela - era quente, tátil, envolvente. Sentada na mesinha do lado de fora, na cúmplice companhia do cão guia, deixando escorrer com prazer pelos dedos a poesia da amora em forma de creme gelado, ouviu um homem falar baixinho:
- Morro de pena dessas pessoas que não enxergam. Quando são jovens assim, então...
Isabela inquieta, não se conteve, e andando insegura na direção da voz, disse:
- Com licença senhor. Se me permite compartilhar, eu também tenho muita pena dos cegos. Essas pessoas engravatadas, que vivem correndo, quase não vêem seus filhos, e não tem tempo pra nada, me afligem a alma, sabe? Não apreciam uma música inteira, não mantêm um momento de abraço, não se deliciam com um sorvete numa tarde de sol... quanta tristeza. Como pode? Alguém deveria urgente ensiná-los a enxergar. Mas não com os olhos, senhor, com o coração.
Como quem sabe das coisas, Gentil esfregou a cabeça nas pernas da dona e lhe lambeu a mão toda melada de amor. Deu um latido breve como quem diz - vamos!, e puxou de leve a coleira, enquanto o homem ainda engolia as palavras - uma a uma. Bela desejou uma boa tarde, sabendo pelo silêncio que conseguira tocar alguém. E seguiu para a praça para ouvir o dia e ver - com seus emocionados olhos do coração - a vida que insistia em se mostrar bonita, sem que ela tenha precisado um dia sequer, abrir os olhos e decifrar sua escrita.
Sylvia Araujo

7 de abril de 2010

Concomitantes

Num dia de forte tempestade, o Rio de Janeiro parou.
Maria, ansiosa, aproveitou a água pra lavar a área.
Bernardo, tranquilo, jogou playstation o dia inteiro.
Joana, amável, ligou pros amigos que não falava há tempos.
Hugo, estressado, brigou com o motorista do ônibus.
Fernanda, magoada, chorou pelo abandono cruel.
Cláudio, feliz, abraçou o primogênito saudável.
Marta, desesperada, perdeu tudo no desabamento.
Lucas, entusiasmado, sorriu com o presente de aniversário.
Ana, alcoólatra, bebeu uma garrafa de whisky.
Sérgio, armado, foi preso em flagrante na hora da fuga.
Solange, ferida, desabou com o soco na costela.
Karen, apaixonada, recebeu um buquê de rosas chá.
Oto, confuso, se casou aos 25 no cartório.
Helena, abandonada, sentiu fome e frio.
José, realizado, publicou um livro de contos.
Antônia, carente, adotou um siamês castrado.
Diego, inconformado, enterrou o irmão mais novo.
Cândida, cinéfila, viu três filmes do Almodóvar.
Guto, esperançoso, ofereceu o dente de leite pra fada.
Chica, ciumenta, esfaqueou o marido infiel.
Wellington, recém nascido, morreu soterrado.
Carolina, vazia - nesse dia cinza de chuva - voou do décimo andar porque não suportava saber que tanta gente sofria e tanta gente amava, enquanto ela simplesmente não sentia nada.

Sylvia Araujo

6 de abril de 2010

Desregulado

Você já me disse que seu coração não mora mais nas entrelinhas - anda meio cansado, desritmado - me lembro bem. Desculpe a falta de conhecimento, meu amigo, mas não tenho mesmo a mínima ideia do que é viver assim; nem se dói, ou quanto. Se é pouco ou além-mar. Sinto muito não poder ajudar. Sabe, o meu coração também muitas vezes me é inútil -  esse músculo frenético, que dispara vez ou outra sem qualquer explicação - mas uma coisa é fato: ele respira fundo os não-ditos. Todos eles, sem distinção. Me alivia bastante não ter que ficar sinalizando a toda hora o que é pra sentir, e o que merece descaso. Ele sabe. E sabe bem, o filho-da-mãe - às vezes até me confunde. Dia desses, por exemplo, andou me brotando sem muita razão. Acredita que anteontem enfiou-me lágrimas nos olhos quando sentiu um abraço de irmãos? Talvez seja hora de ir a um cardiologista averiguar a presteza da bomba, ela deve andar meio entupida, pra vazar assim sem mais nem menos. De qualquer maneira é melhor pulsar desse jeito, meio desregulado, que passar a vida toda empedrado, não é não? Você poderia experimentar um pôr do sol qualquer dia, uma flor na sua inteireza, ou a simples delicadeza de um sorriso de criança. Vai que o danado resolve voltar a bater?


Sylvia Araujo

4 de abril de 2010

Mangas

Ele tem mania de comer mangas com as mãos. Fica lá, com a cara toda lambuzada e aquele fio amarelo e espesso escorrendo queixo abaixo. Faz isso em qualquer lugar, e acha ainda melhor quando pode subir na mangueira para escolher o fruto mais bonito. Todo mundo fala que é nojento ficar com os dedos grudando e com aqueles fiapos estranhos pendurados entre os dentes. Ele ri, dá uma gargalhada deliciosa com a mão suja na frente dos lábios, enquanto fala com os olhos: vocês não sabem o que estão perdendo.
Vitor tem mania de abocanhar a vida da mesma maneira febril com que abocanha mangas. Deixa escorrer pelos poros o néctar dos dias, abraça como se segurasse nas palmas fruta madura, e faz das palavras mãos estendidas - todinhas meladas de amor. Para ele não há dúvidas: mangas - indiscutivelmente - são poesia pura, de suculento e incomparável sabor.

Sylvia Araujo

2 de abril de 2010

A giz

Menina do sapato branco,
do vestido largo,
do olhar feliz.

Pequena do sorriso aberto,
do futuro incerto,
das mãos de cetim.

Menina dos cabelos fartos,
com os pés descalços,
rosa do jardim.

Pequena, teu andar sem freio
faz o meu enredo
ser escrito a giz.

(Pro vento soprar,
pro amor refazer,
pro tempo parar
e brilhar pra você.)
Sylvia Araujo

31 de março de 2010

Pretérito (Im)Perfeito

Amanheceu. Bocejou, espreguiçou, virou. Franziu. Sentou, calçou, levantou. Procurou, procurou, procurou. Estranhou. Escovou, bochechou. Girou. Sentiu, despiu, entrou. Molhou, cantou, lavou. Desligou. Secou, penteou, saiu. Escolheu, vestiu. Ligou, ligou, ligou, desistiu. Suspirou. Arrumou, bateu, desceu. Dirigiu, trabalhou, parou, almoçou. Lembrou. Ligou, ligou, ligou, esbravejou. Voltou. Atendeu, resolveu, calculou. Cansou. Engarrafou, chegou. Abriu, percebeu, abaixou. Segurou, tremeu, leu. Gotejou, choveu, soluçou, gritou. Ligou, ligou, ligou, correu. Revirou, desmoronou, sofreu. Jogou, empurrou, derrubou. Atirou, tropeçou, quebrou. Chorou, chorou, chorou. Encontrou, derramou, encheu. Bebeu, bebeu, bebeu. Esvaziou. Desabou, queimou, ardeu. Encolheu, cortou, enterrou. Dilacerou. Sangrou, sangrou, sangrou. Latejou, zumbiu. Sorriu. Voou, desapareceu...


Sylvia Araujo

29 de março de 2010

Coração na boca

Ela não é capaz de dar dois passos sem salivar.  Já tentou de tudo: óculos escuros e queixo empinado, nariz entupido e olhar embaçado, mas não adianta. Sua boca - voluntariosa - se enche de água por onde passa; vira mar pelas cores das flores de março, pela música que escorre da fresta, pelo sorriso da menina na janela, pelo cheiro do arroz na panela. Até os medos ela lambe. Para evitar confusão com a vizinhança, a mãe amarrou em seu dedo um laço vermelho de fita.
- Não esqueça, minha filha: o coração mora lá no meio do peito, e não na ponta da língua, como você imagina.

(dolorido viver com o coração na boca, e não ser compreendido.)

Sylvia Araujo

28 de março de 2010

Póstumo Amor

Eu nunca soube o que fazer diante dos teus arroubos infantis. Quando dançava descalça no meio da sala, rodopiando de olhos fechados - mais parecendo voar - meu coração contigo fazia par. Eu emudecia, enquanto por dentro derretia. Nunca te disse, Teresa, o quanto era ensolarado o teu amanhecer. O quanto as tuas pálpebras semicerradas, dando bom dia ao dia que vinha, me enchiam o peito de ternura e a alma de uma felicidade incrivelmente plena - quase pueril. E quando ajoelhava no jardim, bolerando cantigas pras sementes brotarem autoconfiantes, cheias de si? Era bonito demais ver tuas mãos cheias de terra acariciando as folhas que cortava - pra dar mais força aos galhos - seus dedos doces lhes pedindo desculpas pelas inevitáveis feridas. Eu sempre soube que a força vinha de ti, meu amor, mas emudecia. Calado sofria por em tempo algum dessa vida inteira ao teu lado, ter te olhado com olhos de amor. Com os meus olhos do amor infinito que sinto por ti. E agora que você se foi - pra onde a minha falsa indiferença não te alcance - fico aqui à míngua, sentindo a falta sufocante do teu sol. Sofrendo a ausência do teu calor de menina, do alto do salto dos seus 80 anos. Chorando tudo o que você me foi, sem nunca ter me exigido nada além do quase nada que eu te dei.  E quando eu te encontrar, Teresa, amor meu, minha princesa, esteja certa: vou te dar um abraço tão apertado, mas tão apertado, que sem precisar dizer nenhuma palavra, você vai ouvir roçar lá no fundo do peito o que eu sempre soube, mas você talvez desconheça - Eu te amo com todas as minhas forças. E vou te amar pro resto da minha morte.

Sylvia Araujo

25 de março de 2010

Invencionice

O farfalhar das folhas ao vento sempre fazia minguar suas palavras. Nunca entendeu como é que podiam expressar tanto sem conjugar verbos ou concordar nomes. E menos ainda como é que podia ele compreender tudo nessa língua estranha. A língua das árvores é ainda mais complexa que a dos homens. Cada variar daquele sussuro tão próprio diz um muito e tanto mais, que às vezes é preciso se reportar às nuvens para entender o que teimam em soprar - por entre ranhuras de casca seca - aqueles gigantes esverdeados. Um dia, deitado sonolento à margem das águas do córrego estreito, sentiu cocegar no fundo do peito aquelas letras sem som: a curva é o gesto de um rio *. Mas de tanto ouvir quem dizia que sentimento é invencionice de pagão, tratou de rezar três terços e nunca mais permitiu que a poesia lhe lambesse o coração.

Sylvia Araujo



* "A curva é o gesto de um rio" é uma frase retirada de uma das muitas preciosas páginas de Leite Derramado, do incrível, deslumbrante, inigualável, Chico Buarque de Hollanda. O resto é pura invencionice.

24 de março de 2010

Ensolarada

Ela corre pela praça de braços abertos, dentro de um vestido rodado estampado, e trás nos cabelos dourados duas fitas de cetim. Seu rosto, quando me olha, tem a cor de quem tem em si a luz de um dia inteiro de sol.
Eu me derreto pelo tamanho do mundo que cabe em mãozinhas tão pequenas. E recebo seu sorriso doce como quem recebe no peito encardido uma lufada morna e ensolarada de verão.

Sylvia Araujo

23 de março de 2010

Enganos

Rose sofre. Chega do trabalho esgotada e, magicamente, transforma vinte minutos em horas. Horas de limpar, cozinhar e se perfumar, até virar a mais linda das flores em tempos de seca. Quando Aderbal passa o cartão de ponto no centro da cidade, ela já está a caminho de casa - suando em bicas, até em dia de frio - porque ai dela se o ônibus lotado atrasar minutos, e a mesa não estiver posta sobre a mais alva das toalhas, herdada da sogra já ida. Ele chega invariavelmente irritado, e ela - de sorriso pronto - já lhe tira a camisa suada, ao mesmo tempo em que lhe enche uma das mãos com o destilado do dia. O boa noite, assim como o afago nos ombros, é sempre mão única. Ela oferece, ele grunhe. Só existem palavras não-ditas na sala, vindas do eco vazio da tevê preto e branco de antena quebrada. Um misto de frases de efeito e chiado agressivo, que Aderbal leva pro banho e arrasta descalço pra cama. Rose deita ao seu lado todos os dias sabendo que a ferida mal cicatrizada do ontem vai voltar a sangrar. Ele monta nela e lhe cospe impropérios, enquanto afunda os nós dos dedos no roxo claro das costelas, até ele escurecer e ficar quase bordô - pelo menos ali a camisa encobre os enganos. Em resposta ao dedo em riste do marido triste, Rose oferece sempre seu menor verso. E a si mesma, sua maior dor. A de nunca poder ser quem é. A de nunca conhecer o amor.

Sylvia Araujo
O que fazer
quando é preciso ser,
mesmo quando não?

Sylvia Araujo

21 de março de 2010

Pra brotar no meu quintal

É de florir que eu sei, mas tem dias desaprendo. Não é coisa que se retome mastigando livros, esse tal brotar - mas suspirando ao pôr do sol. E ando num tempo que em mim o sol não nasce. Sigo anoitecida. Puída. Desbotada. Tendendo a crises de autocomiseração. Sigo insone-insana. Esgotada. Falida. Implorando que meus hojes amanheçam futuro - iluminado, embevecido. Porque quando o olhar abraça forte o amanhã, traz o horizonte pro nosso quintal.
E faz voltar a florir.

Sylvia Araujo

19 de março de 2010

Adolescentricidades

- Caraca, você é muito burra, garota!
- Ô Sylvia, olha esse garoto me chamando de burra... quando eu começar a xingar ele, vai dar merda.
- Galera, vamos combinar uma coisa? Todo mundo aqui tem alguma dificuldade, eu, inclusive, tenho várias. E todo mundo aqui tem facilidade em fazer alguma coisa, que talvez o outro não tenha. Não tem nenhum Nobel nessa sala. Então, a partir de agora não quero mais ouvir ninguém aqui chamando o outro de burro, certo?
- Certo.
- ...
- Caraca, garota, você é muito mal informada!


(Diz aí: esse é ou não é o melhor trabalho do mundo?)

Sylvia Araujo

Sobre "Badia"

"Badia" hoje estava sentada na mesma posição de sempre, no mesmo ponto de ônibus de sempre, no mesmo horário de sempre, à espera de alguém que nunca mais vai voltar. Alheia e oca, olhar fixo no muro pixado, com a perna esquerda em cima do banco, e uma guimba de cigarro apagada entre os dedos magros- do meio de suas inumeráveis cicatrizes invisíveis - ela não me viu. E eu não me fiz ver. Talvez porque a minha dor de ontem voltasse implacável, e eu não tivesse força pra conter a enxurrada; talvez porque meus olhos molhados se fizessem espelho pra ela, e isso eu não pudesse evitar. Talvez porque eu tenha medo. Talvez porque eu tenha sorte. Talvez porque eu seja egoísta. Ou apenas humana demais. Talvez...

Sylvia Araujo

18 de março de 2010

Sorriso ferido

E tem dias que a gente acorda e o mundo grita que ter fome não é não ter o que comer; é não ter o que sentir.


("Badia" me deseja bom dia - com seu sorriso iluminado e sem dentes - sempre que me vê chegando esbaforida e atrasada. Hoje ela estava jogada no chão imundo - no meio da tarde - cheirando a urina, sem a única bermuda surrada de sempre a cobrir seus poucos medos. Mal abria os olhos pequenos, quando me acocorei ao seu lado e perguntei - segurando a sua mão desmaiada - o que ela sentia. A reposta entrecortada, quase inaudível, foi direta e dura: nada. Ela não decifra mais o que sente. E eu, não sei mais o que fazer com tanto sentir - "Badia-querida" hoje me fez doer uma dor que nem ela sabe mais o quanto dói.)

Sylvia Araujo
Ela carrega nos olhos o gosto do amanhã.
E nas solas dos pés, mato molhado.

Sylvia Araujo
Tem hojes que eu acordo música.
E me en-canta o sibilo doce da poeira de estrada batida, desses meus dias de cão.

- Mas só porque sei que eles me são.


Sylvia Araujo

26 de fevereiro de 2010

Fechou os olhos como se o mundo acabasse amanhã. E quando abriu foi tanta vida, mas tanta vida, que fechou de novo com medo de morrer.
Sylvia Araujo

24 de fevereiro de 2010

Sobre garrafas e sonhos

Dono de dedos longos e delicados, e olhos cegos cor de musgo - do alto dos seus quase oitenta anos - ele levanta da cama às cinco e quinze da manhã, invariavelmente. Costuma dizer aos curiosos que abraça os pés com as alpargatas tão cedo, porque a coluna envelhecida já não lhe permite mais ficar deitado por tanto tempo. Mas a verdade-verdadeira é que adora sentir o cheiro das nuvens que se formam no alto do morro - com uma xícara de café fumegante na mão - assim que a claridade do dia espreguiça no horizonte.
Sua casa não tem trincos. Nunca teve. Não tem medo que lhe roubem nada, pois o que lhe é mais precioso aprendeu com a vida a oferecer a quem atravessasse o batente dos seus dias. Além disso, sempre lhe encheu o peito de bons sentimentos ter crianças sorrindo por perto - elas não gostam de portas - mesmo quando ainda era uma, de caniços longos e alegria azul.
Por volta dos treze anos, começou a trabalhar com seu tio-avô, o maior fabricante de artefatos de vidro da região, onde aprendeu a fazer copos, vasos, cinzeiros e objetos vitrificados de toda sorte. Mas o que mais lhe eriçavam os sentidos - desde o primeiro dia - eram mesmo as lindas garrafas multicoloridas de diversas formas e tamanhos que moldava com todo esmero.
Sentado em sua mesa de madeira maciça - no fundo do quarto de vidros e sonhos - rodeado de todos os tipos de garrafas, que esculpiu com as próprias mãos, abana a cabeça para os lados tentando evitar o rebuliço das covas nas bochechas tímidas. As imagens com que as lembranças da fábrica vez ou outra lhe presenteiam, fazem transbordar seus olhos turvos com as cores do fogo durante o cozimento das peças, e uma lágrima gorda ameaça cair. Ele deixa.
Desde muito menino, sempre se inebriou com as nuvens e suas formas arredondadas. Nasceu com o dom de enxergar figuras - das mais estranhas às mais simplórias - até em um cirros distante e estreito. Adorava ficar deitado na grama observando a movimentação dos flocos com o vento. Às vezes fotografava, às vezes enchia um caderno velho de palavras, às vezes pintava. Mas apesar de todo mundo caçoar do seu sonho, tinha certeza de que um dia deixaria de apenas observar, e sentiria em suas próprias mãos a textura delicada de um pedaço daquele algodão alado tão alvo. E mais; ainda faria com que cada criança pudesse ter uma nuvem só sua para colocar nas mãos, sorrir e sonhar.
Hoje, a parte do dia em que mais se delicia é quando escolhe quais delas engarrafar. Tem horas que deixa algumas dançarem no céu, porque têm o cheiro gostoso inconfundível da deslumbrância, e não seria justo que fizessem apenas alguns poucos olhos brilharem. Mas quando sente na boca o gosto suave de brisa, tateia as paredes até chegar à garrafa do dia e trata de colocar delicadamente dentro dela um bocado iluminado e rechonchudo de nuvem.
Todo fim de dia, lá pelas cinco da tarde, mais ou menos, as crianças começam a entrar, enquanto ele fecha a última garrafa. Sente o arfar dos peitinhos alvoroçados logo que cruzam a porta, e abre seus braços instintivamente para a enxurrada de afagos que sempre vêm. Uma a uma as garrafas de sonhos ganham um amigo. E ele, por alguns poucos minutos que seja, volta a enxergar.
Em todo pôr do sol ele vê.
Com os olhos claros do coração.
Sylvia Araujo

Luz própria

- Tá vendo?
- Não. Onde?
- Lá, bem lá no fundo. Viu?
- Não. Cadê?
- Fixa seus olhos no final da reta, bem no meio da escuridão. Tá vendo?
- Escuridão? Não. Onde?
- Fecha bem os olhos. Agora abre. Viu?
- Não. Mas que diabos você tanto quer que eu veja, criatura?
- Aquela luzinha lá no fim do túnel. Agora viu, né?
- Ah, sim, a luz... Mas ela não tá lá no fim do túnel não. Ela sai é dessa lanterna que eu insisto em carregar na testa sempre que preciso tatear o destino.


Sylvia Araujo

5 de fevereiro de 2010

Mentira é verdade que se perde no atalho da vaidade.
  
Sylvia Araujo

4 de fevereiro de 2010

Exaustão

Depois de guerrear mais horas que preciso, vem afrouxando o nó da gravata puída e desabotoando os punhos amarelos, cambaleante a caminho de casa. Mete a chave na porta e, quando pisa na cerâmica quebrada, pressiona a ponta do sapato surrado no outro calcanhar. Ato reflexo.
Pés descalços, larga a maleta lotada de papéis desimportantes em cima da única cadeira, puxa do bolso o maço amassado de cigarros e segue até a pia abarrotada de esquecimentos. Abre o frigobar vazio, apoia o copo de vidro lascado, enche de gelo até a boca e derrama o whisky de segunda - até cobrir a metade dos cubos.
Seu conjugado mede exatos cinco passos número 43 até a janela. Mais dois pra cada lado. Espaço suficiente para abrigar seu mísero ego de filho terceiro de mãe sofrida. Sôfrego por uma lasca de ar, segura com as mãos trêmulas o cigarro aceso e a poção mágica, e apoia os cotovelos no parapeito do mundo para observar o nada.
Abraça com força o silêncio pesado, enquanto rejeita todas as máscaras que se obrigou a usar durante o dia. Agora é noite. Já passou da hora de fazer alarde.
Repete a sessão cigarro-copo-parapeito até perceber o início da íntima dormência na ponta dos dedos e a aproximação dos sonhos bonitos. Satisfeito, abre o chuveiro no máximo e se afoga inteiro na água gelada, ao mesmo tempo em que cantarola baixinho a lembrança gostosa com cheiro de infância.
Quando deita no colchão antigo - exausto do tudo que foi, sem nunca ter sido - imediatamente encerra seus olhos turvos. Transbordando lágrimas secas e engasgos latentes, implora - com o peito aberto e os punhos cerrados - para não amanhecer vivo. Nunca mais.

Sylvia Araujo

2 de fevereiro de 2010

Ser flor

Magnânimo o deleite da flor sob a gota de chuva. Não deveria ser preciso mais, pra gargalhar profundo. Eu ainda arrisco que talvez lhe falte uma nesga de sol. Pequena. Sutil. Mas ela ri.
- A natureza não falha - melhor seria não ser tão humana.

Sylvia Araujo

1 de fevereiro de 2010

Cafeomancia

Como ousa? Como se atreve a me cuspir enganos, passar assim por cima dos meus planos? Vem me falar de flores, vem sussurrar amores... quanta insolência! - eu sou mil rancores. Não vê que a faca dos dias 'inda me sangra o peito? Que meus sonhos-poucos já escorreram? Cara de pau vir cantar futuro, esbaforir em lua, me hastear bandeira... Não adianta vir beijar minhas noites. Não adianta vir me alar de azul. Caso perdido extrapolar meu peito de esperança-nua - ando vivendo crua.
Estúpida.
Maldita borra de café estúpida!

Sylvia Araujo