Amanheceu verde - musgo fértil em ventre de pássaro brotado em horizonte. Antes de abrirem as janelas, lhe descortinou rebelde um sol redondo pelos olhos negros - os raios quentes lhe atravessando íntimos os poros abertos. Sorriu bem dentro, em céu da boca estrelado e dentes pequerruchos de marfim - as covinhas afoitas se debruçando enamoradas no parapeito das velhas rugas - e lentamente amareleceu. A brisa morna fez dançar de leve as cores vivas no varal, e veio delas em magia um cheiro adocicado e primaveril de campo em flor. Um gosto exuberante de tomilho lhe tomou de assalto a ponta da língua - sabor de lembrança que abraça apertado e não deixa partir. Permitiu então que brotasse em pura nascente uma lágrima bonita - perfeita em sua transparência arredondada - que lhe atravessou solene o rosto estreito, como quem mergulha de corpo inteiro em mar aberto, como quem assopra com toda a força dos pulmões um dente de leão - só pra ver a sua alma voar. Dia pleno, pediu ao marido-encantado que lhe escovasse com energia os brancos fios, pra sentir de olhos fechados mais uma vez o prazer do couro cabeludo se esparramando em cascata pelos lençóis trocados - a maciez de algodão a lhe afagar delicada os ombros cansados. Ao longe, uma melodia suave serenava - flautas transversas e violinos em dueto, conversavam poesia sobre rosas-chá. Falavam emocionados do brilho das estrelas e do coaxar dos sapos, como quem fala de champagne e caviar - ela embevecida, ouvia. Noite alta, pensando - o ar faltando e o amor sobrando no peito murcho - achou um bocado estranho tanta vida lhe assoberbar assim os minutos contados, fazendo toda essa batucada irrefreada no coração exausto. Então, em sussurro abraçado ao último suspiro - mastigando com calma todas as vezes em que pisou descalça a grama e dançou em par na chuva - agradeceu baixinho: ainda bem que em mim tudo sempre foi assim. E voou.
Sylvia Araujo