Este blog é uma reunião de textos exclusivamente autorais. Para conhecer mais de mim, dividir sons e sabores poéticos, musicais, cinematográficos, e tantos outros cheiros mais além dos meus, venha tomar um expresso esparramado nas almofadas fofas do meu outro blog, o Abundante-mente. Te espero lá com as velas acesas.

31 de março de 2010

Pretérito (Im)Perfeito

Amanheceu. Bocejou, espreguiçou, virou. Franziu. Sentou, calçou, levantou. Procurou, procurou, procurou. Estranhou. Escovou, bochechou. Girou. Sentiu, despiu, entrou. Molhou, cantou, lavou. Desligou. Secou, penteou, saiu. Escolheu, vestiu. Ligou, ligou, ligou, desistiu. Suspirou. Arrumou, bateu, desceu. Dirigiu, trabalhou, parou, almoçou. Lembrou. Ligou, ligou, ligou, esbravejou. Voltou. Atendeu, resolveu, calculou. Cansou. Engarrafou, chegou. Abriu, percebeu, abaixou. Segurou, tremeu, leu. Gotejou, choveu, soluçou, gritou. Ligou, ligou, ligou, correu. Revirou, desmoronou, sofreu. Jogou, empurrou, derrubou. Atirou, tropeçou, quebrou. Chorou, chorou, chorou. Encontrou, derramou, encheu. Bebeu, bebeu, bebeu. Esvaziou. Desabou, queimou, ardeu. Encolheu, cortou, enterrou. Dilacerou. Sangrou, sangrou, sangrou. Latejou, zumbiu. Sorriu. Voou, desapareceu...


Sylvia Araujo

29 de março de 2010

Coração na boca

Ela não é capaz de dar dois passos sem salivar.  Já tentou de tudo: óculos escuros e queixo empinado, nariz entupido e olhar embaçado, mas não adianta. Sua boca - voluntariosa - se enche de água por onde passa; vira mar pelas cores das flores de março, pela música que escorre da fresta, pelo sorriso da menina na janela, pelo cheiro do arroz na panela. Até os medos ela lambe. Para evitar confusão com a vizinhança, a mãe amarrou em seu dedo um laço vermelho de fita.
- Não esqueça, minha filha: o coração mora lá no meio do peito, e não na ponta da língua, como você imagina.

(dolorido viver com o coração na boca, e não ser compreendido.)

Sylvia Araujo

28 de março de 2010

Póstumo Amor

Eu nunca soube o que fazer diante dos teus arroubos infantis. Quando dançava descalça no meio da sala, rodopiando de olhos fechados - mais parecendo voar - meu coração contigo fazia par. Eu emudecia, enquanto por dentro derretia. Nunca te disse, Teresa, o quanto era ensolarado o teu amanhecer. O quanto as tuas pálpebras semicerradas, dando bom dia ao dia que vinha, me enchiam o peito de ternura e a alma de uma felicidade incrivelmente plena - quase pueril. E quando ajoelhava no jardim, bolerando cantigas pras sementes brotarem autoconfiantes, cheias de si? Era bonito demais ver tuas mãos cheias de terra acariciando as folhas que cortava - pra dar mais força aos galhos - seus dedos doces lhes pedindo desculpas pelas inevitáveis feridas. Eu sempre soube que a força vinha de ti, meu amor, mas emudecia. Calado sofria por em tempo algum dessa vida inteira ao teu lado, ter te olhado com olhos de amor. Com os meus olhos do amor infinito que sinto por ti. E agora que você se foi - pra onde a minha falsa indiferença não te alcance - fico aqui à míngua, sentindo a falta sufocante do teu sol. Sofrendo a ausência do teu calor de menina, do alto do salto dos seus 80 anos. Chorando tudo o que você me foi, sem nunca ter me exigido nada além do quase nada que eu te dei.  E quando eu te encontrar, Teresa, amor meu, minha princesa, esteja certa: vou te dar um abraço tão apertado, mas tão apertado, que sem precisar dizer nenhuma palavra, você vai ouvir roçar lá no fundo do peito o que eu sempre soube, mas você talvez desconheça - Eu te amo com todas as minhas forças. E vou te amar pro resto da minha morte.

Sylvia Araujo

25 de março de 2010

Invencionice

O farfalhar das folhas ao vento sempre fazia minguar suas palavras. Nunca entendeu como é que podiam expressar tanto sem conjugar verbos ou concordar nomes. E menos ainda como é que podia ele compreender tudo nessa língua estranha. A língua das árvores é ainda mais complexa que a dos homens. Cada variar daquele sussuro tão próprio diz um muito e tanto mais, que às vezes é preciso se reportar às nuvens para entender o que teimam em soprar - por entre ranhuras de casca seca - aqueles gigantes esverdeados. Um dia, deitado sonolento à margem das águas do córrego estreito, sentiu cocegar no fundo do peito aquelas letras sem som: a curva é o gesto de um rio *. Mas de tanto ouvir quem dizia que sentimento é invencionice de pagão, tratou de rezar três terços e nunca mais permitiu que a poesia lhe lambesse o coração.

Sylvia Araujo



* "A curva é o gesto de um rio" é uma frase retirada de uma das muitas preciosas páginas de Leite Derramado, do incrível, deslumbrante, inigualável, Chico Buarque de Hollanda. O resto é pura invencionice.

24 de março de 2010

Ensolarada

Ela corre pela praça de braços abertos, dentro de um vestido rodado estampado, e trás nos cabelos dourados duas fitas de cetim. Seu rosto, quando me olha, tem a cor de quem tem em si a luz de um dia inteiro de sol.
Eu me derreto pelo tamanho do mundo que cabe em mãozinhas tão pequenas. E recebo seu sorriso doce como quem recebe no peito encardido uma lufada morna e ensolarada de verão.

Sylvia Araujo

23 de março de 2010

Enganos

Rose sofre. Chega do trabalho esgotada e, magicamente, transforma vinte minutos em horas. Horas de limpar, cozinhar e se perfumar, até virar a mais linda das flores em tempos de seca. Quando Aderbal passa o cartão de ponto no centro da cidade, ela já está a caminho de casa - suando em bicas, até em dia de frio - porque ai dela se o ônibus lotado atrasar minutos, e a mesa não estiver posta sobre a mais alva das toalhas, herdada da sogra já ida. Ele chega invariavelmente irritado, e ela - de sorriso pronto - já lhe tira a camisa suada, ao mesmo tempo em que lhe enche uma das mãos com o destilado do dia. O boa noite, assim como o afago nos ombros, é sempre mão única. Ela oferece, ele grunhe. Só existem palavras não-ditas na sala, vindas do eco vazio da tevê preto e branco de antena quebrada. Um misto de frases de efeito e chiado agressivo, que Aderbal leva pro banho e arrasta descalço pra cama. Rose deita ao seu lado todos os dias sabendo que a ferida mal cicatrizada do ontem vai voltar a sangrar. Ele monta nela e lhe cospe impropérios, enquanto afunda os nós dos dedos no roxo claro das costelas, até ele escurecer e ficar quase bordô - pelo menos ali a camisa encobre os enganos. Em resposta ao dedo em riste do marido triste, Rose oferece sempre seu menor verso. E a si mesma, sua maior dor. A de nunca poder ser quem é. A de nunca conhecer o amor.

Sylvia Araujo
O que fazer
quando é preciso ser,
mesmo quando não?

Sylvia Araujo

21 de março de 2010

Pra brotar no meu quintal

É de florir que eu sei, mas tem dias desaprendo. Não é coisa que se retome mastigando livros, esse tal brotar - mas suspirando ao pôr do sol. E ando num tempo que em mim o sol não nasce. Sigo anoitecida. Puída. Desbotada. Tendendo a crises de autocomiseração. Sigo insone-insana. Esgotada. Falida. Implorando que meus hojes amanheçam futuro - iluminado, embevecido. Porque quando o olhar abraça forte o amanhã, traz o horizonte pro nosso quintal.
E faz voltar a florir.

Sylvia Araujo

19 de março de 2010

Adolescentricidades

- Caraca, você é muito burra, garota!
- Ô Sylvia, olha esse garoto me chamando de burra... quando eu começar a xingar ele, vai dar merda.
- Galera, vamos combinar uma coisa? Todo mundo aqui tem alguma dificuldade, eu, inclusive, tenho várias. E todo mundo aqui tem facilidade em fazer alguma coisa, que talvez o outro não tenha. Não tem nenhum Nobel nessa sala. Então, a partir de agora não quero mais ouvir ninguém aqui chamando o outro de burro, certo?
- Certo.
- ...
- Caraca, garota, você é muito mal informada!


(Diz aí: esse é ou não é o melhor trabalho do mundo?)

Sylvia Araujo

Sobre "Badia"

"Badia" hoje estava sentada na mesma posição de sempre, no mesmo ponto de ônibus de sempre, no mesmo horário de sempre, à espera de alguém que nunca mais vai voltar. Alheia e oca, olhar fixo no muro pixado, com a perna esquerda em cima do banco, e uma guimba de cigarro apagada entre os dedos magros- do meio de suas inumeráveis cicatrizes invisíveis - ela não me viu. E eu não me fiz ver. Talvez porque a minha dor de ontem voltasse implacável, e eu não tivesse força pra conter a enxurrada; talvez porque meus olhos molhados se fizessem espelho pra ela, e isso eu não pudesse evitar. Talvez porque eu tenha medo. Talvez porque eu tenha sorte. Talvez porque eu seja egoísta. Ou apenas humana demais. Talvez...

Sylvia Araujo

18 de março de 2010

Sorriso ferido

E tem dias que a gente acorda e o mundo grita que ter fome não é não ter o que comer; é não ter o que sentir.


("Badia" me deseja bom dia - com seu sorriso iluminado e sem dentes - sempre que me vê chegando esbaforida e atrasada. Hoje ela estava jogada no chão imundo - no meio da tarde - cheirando a urina, sem a única bermuda surrada de sempre a cobrir seus poucos medos. Mal abria os olhos pequenos, quando me acocorei ao seu lado e perguntei - segurando a sua mão desmaiada - o que ela sentia. A reposta entrecortada, quase inaudível, foi direta e dura: nada. Ela não decifra mais o que sente. E eu, não sei mais o que fazer com tanto sentir - "Badia-querida" hoje me fez doer uma dor que nem ela sabe mais o quanto dói.)

Sylvia Araujo
Ela carrega nos olhos o gosto do amanhã.
E nas solas dos pés, mato molhado.

Sylvia Araujo
Tem hojes que eu acordo música.
E me en-canta o sibilo doce da poeira de estrada batida, desses meus dias de cão.

- Mas só porque sei que eles me são.


Sylvia Araujo