Este blog é uma reunião de textos exclusivamente autorais. Para conhecer mais de mim, dividir sons e sabores poéticos, musicais, cinematográficos, e tantos outros cheiros mais além dos meus, venha tomar um expresso esparramado nas almofadas fofas do meu outro blog, o Abundante-mente. Te espero lá com as velas acesas.

22 de novembro de 2010

Offline

Olhou no espelho depois de semanas ausente de si. A barba por fazer dizia das léguas de distância e da altura do muro que construiu ao redor. O fio branco e reluzente no meio da escuridão no alto da cabeça não era nada diante daqueles olhos sem vida. Eram seus, não havia dúvidas. Mas de quem seria aquela dor que não lhe doía, mas lhe havia matado? De quem seria toda aquela imensa falta de amor?


Sylvia Araujo

18 de novembro de 2010

Cíclico

Brotei
gota.

De um fino
filete
em nascente
de cachoeira
descendo o rio
virei mar.
Beijada de sal
ensolarou
evaporei
renasci
nuvem.

Hoje
choro
tenra chuva
na busca
da essência
de ser pingo
pequeno
e límpido
novamente.

Re-começar
em ciclo
pra sempre
outra

- gota.

Sylvia Araujo

11 de novembro de 2010

Borboleta nos trilhos

Caminhava, linda e delicada. Um passo após o outro - a ponta de um dos pés descalços, tocando cuidadosa o calcanhar seguro. Os braços abertos mantinham em equilíbrio o corpo leve e franzino, e davam a ela um quê de bailarina manca. Ela vibrava nos trilhos. E sorria inteira em sua falta de dentes, era pura inocência, menina. O sol rasgava o azul, e seus fiapos brilhantes atravessavam a seda dourada que voava ao vento. Um fio da trança quase solta beijava a flor meio murcha presa atrás da orelha pequena. Seus olhos seguiam o horizonte, como se lá estivesse guardado o maior de todos os tesouros. Ela comia o futuro com a avidez dos que carregam em si a certeza de nunca terem certeza de nada. O trem, suspirando fumaça em seu ritmo marcado pela rotina dos dias, vinha operário. A menina então, se afastou da rota e deitou no chão - os olhos cinzazulados cerrados, a respiração suspensa - sentindo subir pelas costas cada vagão, cada roda. Tocava toda pedrinha pontuda com a extremidade dos dedos e as levantava com um arco do fino braço, deixando cair uma a uma as notas da sua melodia. Era o trem, era ela, era a incerteza e a beleza do improviso em forma de criança ensolarada. Era a música dos dias, do cinza, do morto, e daquele amarelo brotado em tranças, escapulindo sorrisos pela janela da boca dela. Ela era casa aberta, sinfonia escorrendo pelas portas brancas. A locomotiva, altiva e certa em seu caminho indesviável, sem olhar pra trás, sorriu.

Sylvia Araujo

4 de novembro de 2010

Pequenezas

I.


Essa dor que carrego nas palmas das mãos - recém-nascida que grita de fome, enquanto eu não tenho mais peito que lhe alimente os medos. Ando paz. Caminho esperanças. Que grite, dor. Que berre. Que morra de fome enquanto eu vingo de amor.


II.

Ouvindo Vivaldi. E parece que os insetos também, em seu balé irretocável em volta das árvores. Sobem e descem, rodopiam - quase dão as mãos. E se separam, batendo as asas pequenas em Allegro. Por entre os bambus, a vida farfalha. O assobio do vento acompanha o mar que me corre por dentro. Cheiro à terra molhada. Encho enchente - barro(o)ca.


III.

No meio do mato, despertador é revoada de maritacas. Cantiga de ninar é grilo, que cisma em fofocar com sapo ao pé de estrelas. A música é o vento, que beija as folhas como se fosse seu primeiro e único amor. A beleza é a imensidão do nada - verde musgo com pitadas de azul-céu. E é pra lá que eu vou. Vazia, pra encher de tanto e voltar maior.


IV.

Trago no peito uma rosa em broto. Na mão, a faca - incapaz de decepar-lhe a vida.


V.

Vinha pairando - beira d´água. Os pés descalços assoprando ao vento a areia fina, as unhas vermelhas recém-beijadas de mar. Nos cabelos, trazia um cheiro de vida amanhecida - transparente poesia. Cruzei seus passos, a dois centímetros de tocar sua mão. Ela me olhou no susto do vácuo que o tempo fez atravessar seus dedos nus. E naquele mel, derretido, eu vi. E tive a certeza mais certa da abelha: o meu caminho era ali.


VI.

Tudo que queria era aquelas mãos de pianista, seus dedos ágeis e longos, desenhando o contorno dos seus olhos à meia-luz. Adormecer com a serenata das falanges compridas rascunhando suas sobrancelhas fartas. Sonhar com notas de marfim. E amanhecer melodia.


VII.

Os olhos sussurram. Silenciam, lamentam, sorriem. São janelas escancaradas ao pôr do sol morno e às tempestades enraivecidas. Jardins brotados, cores. Desertos - areia e vento. Pedras de gelo, diamantes. Brutos. Os olhos vão, me são, tensão. Eles estão - um fio. Fino, leve e vivo - ligação direta dentro-fora, aqui-além. Coração que escapa. Peito que vê. Sou toda olhares.


VIII.
No meio de um soluço, a iluminação. Foi um erro - broto do desespero por sentir-se vivo. Abraçou o violão e compôs um tango. Rascante. Que lhe cortou os dedos e lhe arrancou o sangue em suspiros mórbidos. Dez mãos de terra e o sepultamento - sorriu.


IX.

Andava vazio. Cada pedaço de mato, de riso, de espanto, fazia crescer a montanha no canto do peito. Até que um dia ela veio. E brotou bonito pelos olhos - seus galhos verdes anunciando a primavera. Então, ele ventou com força e espalhou seus cacos - abrindo espaço no coração - pra que ela pudesse espreguiçar seus sonhos e hastear, enfim, a bandeira da invasão.


X.

No início, parecia uma valsa. Aqueles rasgos vermelhos na boca do céu - dois pra lá, dois pra cá. Os gritos me remetiam a um coro, uma ópera, talvez. De olhos fechados, eu tentava afastar aqueles olhinhos brilhantes. Eles tinham a vida magnetizante de uma bala de fuzil e insistiam: porquê? Eu não sei, anjo. Eu não consigo entender porque um homem deste tamanho carrega nas mãos um brinquedo que mata. E esse sorriso idiota na cara.


Sylvia Araujo