Este blog é uma reunião de textos exclusivamente autorais. Para conhecer mais de mim, dividir sons e sabores poéticos, musicais, cinematográficos, e tantos outros cheiros mais além dos meus, venha tomar um expresso esparramado nas almofadas fofas do meu outro blog, o Abundante-mente. Te espero lá com as velas acesas.

26 de fevereiro de 2010

Fechou os olhos como se o mundo acabasse amanhã. E quando abriu foi tanta vida, mas tanta vida, que fechou de novo com medo de morrer.
Sylvia Araujo

24 de fevereiro de 2010

Sobre garrafas e sonhos

Dono de dedos longos e delicados, e olhos cegos cor de musgo - do alto dos seus quase oitenta anos - ele levanta da cama às cinco e quinze da manhã, invariavelmente. Costuma dizer aos curiosos que abraça os pés com as alpargatas tão cedo, porque a coluna envelhecida já não lhe permite mais ficar deitado por tanto tempo. Mas a verdade-verdadeira é que adora sentir o cheiro das nuvens que se formam no alto do morro - com uma xícara de café fumegante na mão - assim que a claridade do dia espreguiça no horizonte.
Sua casa não tem trincos. Nunca teve. Não tem medo que lhe roubem nada, pois o que lhe é mais precioso aprendeu com a vida a oferecer a quem atravessasse o batente dos seus dias. Além disso, sempre lhe encheu o peito de bons sentimentos ter crianças sorrindo por perto - elas não gostam de portas - mesmo quando ainda era uma, de caniços longos e alegria azul.
Por volta dos treze anos, começou a trabalhar com seu tio-avô, o maior fabricante de artefatos de vidro da região, onde aprendeu a fazer copos, vasos, cinzeiros e objetos vitrificados de toda sorte. Mas o que mais lhe eriçavam os sentidos - desde o primeiro dia - eram mesmo as lindas garrafas multicoloridas de diversas formas e tamanhos que moldava com todo esmero.
Sentado em sua mesa de madeira maciça - no fundo do quarto de vidros e sonhos - rodeado de todos os tipos de garrafas, que esculpiu com as próprias mãos, abana a cabeça para os lados tentando evitar o rebuliço das covas nas bochechas tímidas. As imagens com que as lembranças da fábrica vez ou outra lhe presenteiam, fazem transbordar seus olhos turvos com as cores do fogo durante o cozimento das peças, e uma lágrima gorda ameaça cair. Ele deixa.
Desde muito menino, sempre se inebriou com as nuvens e suas formas arredondadas. Nasceu com o dom de enxergar figuras - das mais estranhas às mais simplórias - até em um cirros distante e estreito. Adorava ficar deitado na grama observando a movimentação dos flocos com o vento. Às vezes fotografava, às vezes enchia um caderno velho de palavras, às vezes pintava. Mas apesar de todo mundo caçoar do seu sonho, tinha certeza de que um dia deixaria de apenas observar, e sentiria em suas próprias mãos a textura delicada de um pedaço daquele algodão alado tão alvo. E mais; ainda faria com que cada criança pudesse ter uma nuvem só sua para colocar nas mãos, sorrir e sonhar.
Hoje, a parte do dia em que mais se delicia é quando escolhe quais delas engarrafar. Tem horas que deixa algumas dançarem no céu, porque têm o cheiro gostoso inconfundível da deslumbrância, e não seria justo que fizessem apenas alguns poucos olhos brilharem. Mas quando sente na boca o gosto suave de brisa, tateia as paredes até chegar à garrafa do dia e trata de colocar delicadamente dentro dela um bocado iluminado e rechonchudo de nuvem.
Todo fim de dia, lá pelas cinco da tarde, mais ou menos, as crianças começam a entrar, enquanto ele fecha a última garrafa. Sente o arfar dos peitinhos alvoroçados logo que cruzam a porta, e abre seus braços instintivamente para a enxurrada de afagos que sempre vêm. Uma a uma as garrafas de sonhos ganham um amigo. E ele, por alguns poucos minutos que seja, volta a enxergar.
Em todo pôr do sol ele vê.
Com os olhos claros do coração.
Sylvia Araujo

Luz própria

- Tá vendo?
- Não. Onde?
- Lá, bem lá no fundo. Viu?
- Não. Cadê?
- Fixa seus olhos no final da reta, bem no meio da escuridão. Tá vendo?
- Escuridão? Não. Onde?
- Fecha bem os olhos. Agora abre. Viu?
- Não. Mas que diabos você tanto quer que eu veja, criatura?
- Aquela luzinha lá no fim do túnel. Agora viu, né?
- Ah, sim, a luz... Mas ela não tá lá no fim do túnel não. Ela sai é dessa lanterna que eu insisto em carregar na testa sempre que preciso tatear o destino.


Sylvia Araujo

5 de fevereiro de 2010

Mentira é verdade que se perde no atalho da vaidade.
  
Sylvia Araujo

4 de fevereiro de 2010

Exaustão

Depois de guerrear mais horas que preciso, vem afrouxando o nó da gravata puída e desabotoando os punhos amarelos, cambaleante a caminho de casa. Mete a chave na porta e, quando pisa na cerâmica quebrada, pressiona a ponta do sapato surrado no outro calcanhar. Ato reflexo.
Pés descalços, larga a maleta lotada de papéis desimportantes em cima da única cadeira, puxa do bolso o maço amassado de cigarros e segue até a pia abarrotada de esquecimentos. Abre o frigobar vazio, apoia o copo de vidro lascado, enche de gelo até a boca e derrama o whisky de segunda - até cobrir a metade dos cubos.
Seu conjugado mede exatos cinco passos número 43 até a janela. Mais dois pra cada lado. Espaço suficiente para abrigar seu mísero ego de filho terceiro de mãe sofrida. Sôfrego por uma lasca de ar, segura com as mãos trêmulas o cigarro aceso e a poção mágica, e apoia os cotovelos no parapeito do mundo para observar o nada.
Abraça com força o silêncio pesado, enquanto rejeita todas as máscaras que se obrigou a usar durante o dia. Agora é noite. Já passou da hora de fazer alarde.
Repete a sessão cigarro-copo-parapeito até perceber o início da íntima dormência na ponta dos dedos e a aproximação dos sonhos bonitos. Satisfeito, abre o chuveiro no máximo e se afoga inteiro na água gelada, ao mesmo tempo em que cantarola baixinho a lembrança gostosa com cheiro de infância.
Quando deita no colchão antigo - exausto do tudo que foi, sem nunca ter sido - imediatamente encerra seus olhos turvos. Transbordando lágrimas secas e engasgos latentes, implora - com o peito aberto e os punhos cerrados - para não amanhecer vivo. Nunca mais.

Sylvia Araujo

2 de fevereiro de 2010

Ser flor

Magnânimo o deleite da flor sob a gota de chuva. Não deveria ser preciso mais, pra gargalhar profundo. Eu ainda arrisco que talvez lhe falte uma nesga de sol. Pequena. Sutil. Mas ela ri.
- A natureza não falha - melhor seria não ser tão humana.

Sylvia Araujo

1 de fevereiro de 2010

Cafeomancia

Como ousa? Como se atreve a me cuspir enganos, passar assim por cima dos meus planos? Vem me falar de flores, vem sussurrar amores... quanta insolência! - eu sou mil rancores. Não vê que a faca dos dias 'inda me sangra o peito? Que meus sonhos-poucos já escorreram? Cara de pau vir cantar futuro, esbaforir em lua, me hastear bandeira... Não adianta vir beijar minhas noites. Não adianta vir me alar de azul. Caso perdido extrapolar meu peito de esperança-nua - ando vivendo crua.
Estúpida.
Maldita borra de café estúpida!

Sylvia Araujo

Mais uns dias

Acordou com aquele gosto familiar de mel nos lábios. Tateou - depois de meses - o buraco que deixaram lá dentro as canções que ele sussurrava pros seus olhos vermelhos, naquelas noites tão secas de chuva. A ausência daquele incorruptível coração na bandeja - logo pela manhã - nunca lhe fez tanto mal. Ao menos isso ela sabe.
Fazia tempos que não remoía momentos. Nem recorda quando foi que o cheiro dos cubos milimétricos de manga madura deixaram de assaltar seus  bons-dias. Olhos no teto, se deu conta de que nunca antes havia pensado nisso tudo, desde que ele se foi.
Por isso, não conseguiu perceber com nitidez se as lágrimas gordas chegaram pra lhe dizer que ele faz falta, ou se era ela mesma que precisava urgente se despir na frente do espelho, pra se enxergar melhor.
Com as sobrancelhas grudadas uma na outra, se arrastou até o armário do banheiro, colocou umas três pílulas coloridas embaixo da língua e voltou a deitar.
Talvez fosse melhor esperar mais uns dias.

Sylvia Araujo

Pros pés

- Mãe, me empresta o seu chinelo?
- Te empresto as minhas asas. Serve?
Sylvia Araujo