Sua casa não tem trincos. Nunca teve. Não tem medo que lhe roubem nada, pois o que lhe é mais precioso aprendeu com a vida a oferecer a quem atravessasse o batente dos seus dias. Além disso, sempre lhe encheu o peito de bons sentimentos ter crianças sorrindo por perto - elas não gostam de portas - mesmo quando ainda era uma, de caniços longos e alegria azul.
Por volta dos treze anos, começou a trabalhar com seu tio-avô, o maior fabricante de artefatos de vidro da região, onde aprendeu a fazer copos, vasos, cinzeiros e objetos vitrificados de toda sorte. Mas o que mais lhe eriçavam os sentidos - desde o primeiro dia - eram mesmo as lindas garrafas multicoloridas de diversas formas e tamanhos que moldava com todo esmero.
Sentado em sua mesa de madeira maciça - no fundo do quarto de vidros e sonhos - rodeado de todos os tipos de garrafas, que esculpiu com as próprias mãos, abana a cabeça para os lados tentando evitar o rebuliço das covas nas bochechas tímidas. As imagens com que as lembranças da fábrica vez ou outra lhe presenteiam, fazem transbordar seus olhos turvos com as cores do fogo durante o cozimento das peças, e uma lágrima gorda ameaça cair. Ele deixa.
Desde muito menino, sempre se inebriou com as nuvens e suas formas arredondadas. Nasceu com o dom de enxergar figuras - das mais estranhas às mais simplórias - até em um cirros distante e estreito. Adorava ficar deitado na grama observando a movimentação dos flocos com o vento. Às vezes fotografava, às vezes enchia um caderno velho de palavras, às vezes pintava. Mas apesar de todo mundo caçoar do seu sonho, tinha certeza de que um dia deixaria de apenas observar, e sentiria em suas próprias mãos a textura delicada de um pedaço daquele algodão alado tão alvo. E mais; ainda faria com que cada criança pudesse ter uma nuvem só sua para colocar nas mãos, sorrir e sonhar.
Hoje, a parte do dia em que mais se delicia é quando escolhe quais delas engarrafar. Tem horas que deixa algumas dançarem no céu, porque têm o cheiro gostoso inconfundível da deslumbrância, e não seria justo que fizessem apenas alguns poucos olhos brilharem. Mas quando sente na boca o gosto suave de brisa, tateia as paredes até chegar à garrafa do dia e trata de colocar delicadamente dentro dela um bocado iluminado e rechonchudo de nuvem.
Todo fim de dia, lá pelas cinco da tarde, mais ou menos, as crianças começam a entrar, enquanto ele fecha a última garrafa. Sente o arfar dos peitinhos alvoroçados logo que cruzam a porta, e abre seus braços instintivamente para a enxurrada de afagos que sempre vêm. Uma a uma as garrafas de sonhos ganham um amigo. E ele, por alguns poucos minutos que seja, volta a enxergar.
Em todo pôr do sol ele vê.
Com os olhos claros do coração.
Sylvia Araujo
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