Sylvia Araujo
Este blog é uma reunião de textos exclusivamente autorais. Para conhecer mais de mim, dividir sons e sabores poéticos, musicais, cinematográficos, e tantos outros cheiros mais além dos meus, venha tomar um expresso esparramado nas almofadas fofas do meu outro blog, o Abundante-mente. Te espero lá com as velas acesas.
18 de abril de 2010
Chuva
Jorge era um rapaz sisudo. Desde criança nunca foi de muitas intimidades. Falava pouco, não contestava as regras e raramente se aventurava fora do seu próprio mundo. Passava horas trancafiado no quarto, sem que ninguém ouvisse a sua voz. Na adolescência, se tornou uma pessoa ainda mais fechada. Laura ficava intrigada com a falta de brilho do filho, percebia que ele não tinha amigos e estudava demais, mas nunca quis interferir. Achava que respeitando a sua personalidade introspectiva e não lhe fazendo perguntas demais, conquistaria a sua confiança - além de poupar a si mesma o desgaste com as intermináveis e infrutíferas discussões familiares. A relação dos dois sempre foi extremamente superficial. Mãe solteira, Laura trabalhava à exaustão. Viajava dias seguidos, vivia no telefone, e quando estava em casa costumava abusar de soníferos fortes, para apagar por horas seguidas. Numa casa confortável, mobiliada com esmero, mãe e filho eram como estranhos que dividiam o único banheiro. Num dia de cansaço extremo, Laura encerrou o expediente mais cedo. Quase chegando em casa, notou na esquina uma movimentação diferente, pessoas aglomeradas, gente nas janelas, e no meio do asfalto estreito homens e mulheres criavam um engarrafamento fora do normal. Percebendo que a confusão se concentrava na frente do prédio de dez andares, apressou o passo no ritmo do coração. A ambulância parada em frente à portaria, com as luzes vermelhas girando sem parar, fez seu estômago embrulhar. Quando abriu espaço entre a multidão e viu o filho estendido no chão, sua respiração parou. Piscou uma, duas, três vezes sem conseguir sair do lugar. Jorge estava nu, de bruços, cheio de marcas cicatrizadas de cortes fundos nas pernas e nos braços, com os cabelos lisos espalhados sobre uma poça enorme de sangue emoldurando seus olhos abertos. Com a alma dilacerada e o coração vazio, Laura ajoelhou ao lado do filho e contou a ele como foi o seu dia. Perguntou da escola, dos amigos, dos filmes e músicas que ele mais gostava e disse - enquanto afagava seus cabelos molhados - que iria comprar batatas fritas, para comerem juntos na mesa da sala. Com as lágrimas pesadas escorrendo pelo rosto, a mãe abraçou apertado o corpo frio e franzino do filho. E até o momento em que o chão úmido sumiu debaixo dos seus joelhos e seus olhos febris não viram nada além de uma nuvem branca muito densa, ficou repetindo e repetindo e repetindo incansavelmente: eu te amo, meu filho.
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4 comentários:
Sylvia! Lindo texto!Tocantes palavras! O pior é saber que por mais doloroso, que seja, isso acontece com mais frequência do que imaginamos! Triste realidade!
Um beijo!
Ai, Sylvia... doeu!
E dói ainda mais, saber que não é ficção.
Tantas vezes tarde demais!
Impressionante o teu texto!
Gosto da forma como escreves!
Um beijo.
Lindo Sylvia,
tão doloroso é estar sozinho, completamente só e com alguém ao nosso lado.Quão mais solitário isto é! Seu texto nos envolve e nos leva a sentir a mesma dor dos personagens. Gostei muito.
bjs
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