Este blog é uma reunião de textos exclusivamente autorais. Para conhecer mais de mim, dividir sons e sabores poéticos, musicais, cinematográficos, e tantos outros cheiros mais além dos meus, venha tomar um expresso esparramado nas almofadas fofas do meu outro blog, o Abundante-mente. Te espero lá com as velas acesas.

13 de abril de 2010

Paternidade

Meu nome é João dos Santos Silva e é meu primeiro dia aqui. Tenho 32 anos e sou um viciado em cocaína e álcool. Mas o que me trouxe mesmo foi o crack. Eu fumei do cachimbo ontem pra ter coragem de desenrolar umas paradas lá. Só que deu tudo errado e eu entrei na fissura. E o lance é sinistro, braço.  Acontece que eu sou pai de dois filhos. Eles são a única coisa que tenho nessa vida. Eu não posso deixar que a minha família acabe de novo, Dona. E é por isso que eu vim.  Já que todo mundo aqui é enrolado com alguma treta, eu vou falar. Até porque preciso tirar essas coisas daqui de dentro de mim, sabe qual é? Minha mãe morreu de álcool, Dona. É o que diz lá no papel. Mas a verdade mesmo é que os canas meteram nela, até ela morrer. Eram mais de seis. Eu e meus irmãos vimos ela estrebuchar lá no chão, mas a gente não podia fazer nada, senão apagavam a molecada também. Meu pai bateu as botas no xadrez, depois de uns bagulhos errados que ele fez - pegou 40 anos. Meus dois irmãos morreram de bala, pelas costas, um com quinze, outro com dezessete, maior vacilação. Tem um lá que eu nunca mais vi. Botaram ele pra correr da comunidade porque se meteu com a mulher do chefe. Aí já viu. Minha irmã se enrolou com a bandidagem e acabou no meio dos pneus. Só sobrou uma, Dona. A Neuza é de Jesus. Eu não acredito nessas porras de religião, Deus, o caralho a quatro, desculpa aí os palavreados, mas só falando assim. Que Pai é esse que te tira tudo que você tem? Pra mim isso é padrasto bebum. Aí, sabe como é, eu entrei pra vida louca, fiz um monte de parada errada, até que eu conheci a Sônia. Ah, Dona, nega bonita, a Sônia... Passista da escola, cheia de ziriguidum. E ela me deu minhas duas jóias. Um casal. Cada um mais lindo que o outro. Aí eu comecei a ter medo dos lances darem errado, e eu morrer de cano, ou os canas invadirem a minha residência e maltratarem meus pequenos, sabe como é. Os caras não querem saber se é criança não. Saem largando o dedo mesmo. Por isso que eu fumei a pedra ontem, pra levar uma grana forte e sair dessa vida de erro. Mas aí a parada melou e eu fiquei nessa fissura sinistra, e hoje, quando eu tava com o cachimbo de novo na mão, pensei aqui comigo, pára com isso cara, deixa de ser vacilão, mané. Vai lá na reunião do bagulho, pra ver se tu sai dessa. Porque eu te digo uma coisa, Dona, eu vivi sozinho, e a vida me deixou muita cicatriz pelo corpo e pela mente. Mas meus filhos essa filha da puta não vai marcar não. Meus filhos não.
Sylvia Araujo 




Nota: Este texto foi escrito com resquícios das inúmeras impressões que me impactaram durante a narrativa absurdamente realista do repórter Caco Barcellos, no livro Abusado.  A edição, com mais de 500 páginas, conta em minúcias detalhes da vida de pessoas que viviam em um dos morros mais violentos do Rio de janeiro na década de oitenta. Um excelente trabalho do jornalista, que retrata com uma fidelidade dolorida as relações sociais, pessoais e profissionais de todos os personagens inseridos na guerra do tráfico nesta época. É a realidade nos escarrando na cara. E o máximo que podemos fazer nessa hora, é limpar a saliva do rosto com as costas das mãos.

8 comentários:

nydia bonetti disse...

Que texto Sylvia - de doer. A dona vida sabe mesmo ser dura... Que força tem tua escrita! Gostei muito. Bjos.

Solange Maia disse...

Sylvia,

João é um pouco de todos nós, é a caricatura da dura realidade, é o retrato preto e branco...

belíssimo texto.
forte.

ah... e obrigada pela delicadeza lá no Eucaliptos... fiquei feliz, feliz....

beijinhos

Sylvio de Alencar. disse...

Bom texto. Um prazer de se ler.
As coisas rolam desse jeito, bom o final.

Abrçs.

Sueli Maia (Mai) disse...

Caramba, Sylvia, que texto!
Uma dose de realidade com uma escrita de esmero.
A fissura no mais amplo sentido foi o que ficou ecoando.
Duro e seco mais dos melhores que tenho lido.
bjo

xyz disse...

Belíssimo texto!
Diretasso, soco na boca! como eu vivo falando!
Muito bem dado, eu diria!
Abraço
Elis

Bárbara disse...

Sensacional sem ser sensacionalista.

Parabéns.

OBS: Esse livro do Caco é muito chocante, bom demais.

bjs

Ulisses Reis ® disse...

Dificil muito dificil !!!

J.R. Lima disse...

Ótimo, isto!

A vida... ah, a vida. E há quem diga que as oportunidades são as mesmas para todos.

Muito legais os teus dois blogues!

Obrigado pela visita e pelo comentário gentil à minha postagem no Manufaturas.

Um abraço!