Este blog é uma reunião de textos exclusivamente autorais. Para conhecer mais de mim, dividir sons e sabores poéticos, musicais, cinematográficos, e tantos outros cheiros mais além dos meus, venha tomar um expresso esparramado nas almofadas fofas do meu outro blog, o Abundante-mente. Te espero lá com as velas acesas.

5 de junho de 2010

Gota

Sai despenteada e apressada. Primeiro a filha na escola, depois o filho na natação. A Ioga fica pra depois. Volta pra casa, coloca a roupa na máquina, lava a louça da pia. Vassoura na sala, pano nos quartos, desinfetante no banheiro. Hora de buscar o filho na natação. Passa o uniforme, dá banho, comida, penteia os cabelos, deixa na escola com um beijo e um eu te amo. No ponto de ônibus lembra que precisa estender a roupa. Volta mais uma vez, pendura a roupa na corda, coloca as panelas na geladeira e, no portão - no exato momento em que as chaves caem no chão - percebe que está de chinelos. Verdes limão. Com a maquiagem já derretida entra de novo e coloca os saltos. Olha no relógio, já deveria estar na reunião. Desiste do ônibus, pega um táxi. Chega atrasada, dá boa tarde, escuta, organiza, propõe, resolve, indica. Fica aflita. É muita coisa e não há tempo. Delega, entrega e sai correndo. Hora de buscar os filhos na escola. Pega um ônibus, vai em pé. Hora do rush, engarrafamento. Abre um livro e vinte páginas depois desce na esquina. O salto quebra - estava demorando. Tira os sapatos, joga na lixeira e vai descalça. Pega os filhos, um beijo em cada um mais dois eu te amo, como foi o dia. Duas mochilas, mais bolsa de compras, laptop e pasta de couro. Quase não dá, mas tem que dar. Prepara a janta, ajuda no dever de casa, dá banho, conta uma história de dragões e princesas pra agradar os gregos e os troianos que dividem o mesmo quarto. Mais um beijo em cada um, dois eu te amo e um boa noite, durmam com os anjos. Apaga a luz. Respira. Descalça, caminha sem pressa até a cozinha. Abre a garrafa lentamente e escuta atenta o barulho do líquido estalando os cubos de gelo no fundo do copo. E aquela gota - não a mesma, outra - amarelada, reluzente, abrindo caminho pelo corpo transparente do vidro, caramujando em rolamentos circenses quase chegando ao rótulo avermelhado; aquela gota inteira, insistente, que magicamente a transporta para outro lugar. O lugar das maravilhas que, de tão mínimas, se tornam quase invisíveis aos olhos do tempo que escorre. E ela agradece por mais esse micro-poema que orvalha diante do seu rosto cansado. Porque enquanto a gota - aquela, não outra - estiver serpenteando garrafa abaixo e seu coração se mantiver atento à ela, sua vida já valeu a pena. E o amanhã será sempre outro dia.

Sylvia Araujo

10 comentários:

Macaires disse...

Lindo texto!
A rotina, o cotidiano, não é nada fácil, mas se a poesia pairar sobre nossos dias, tudo fica mais belo e mais gostoso de levar!

Beijos, querida!

mchinaski disse...

Ah, Sylvia!

e estas gotas, que vivem nos salvando?
(ao menos tentando)

Juan Moravagine Carneiro disse...

Realmente intenso...

Belo e intenso!

abraço

Caminhos Poéticos disse...

"Não haverá borboletas se a vida não passar por longas e silenciosas metamorfoses."

Rubem Alves

Feliz Domingo e beijos meus...M@ria

Gaby Lirie disse...

Gostei muito daqui.

Ótimo texto.

Grande beijo.

Moska de Bar disse...

O dia, pra mim, é sempre o que foi a madrugada. Às vezes os olhos só se abrem de lua a lua, mas nesgas de sol sempre invadem a janela. Eu vejo. Sinto. Te beijo!

Trago Versos disse...

"Toda rotina tem sua beleza"
bom sopros pra vc
xD

Ju Fuzetto disse...

Delicado flor!!!

Um beijo

lídia martins disse...

Sérá Sylvia

"É no orvalho de pequenas coisas que o coração encontra sua manhã e se sente refrescado."


Um beijo de sol com sonho. Para que eles não escorram por água abaixo.

Cynthia Lopes disse...

Como eu disse no meu comentário do texto anterior, a porta se abriu novamente. Um pequeno universo e uma tão grande vida, um enorme e lindo personagem vc construiu em poucas linhas, amei. bjs