Sylvia Araujo
Este blog é uma reunião de textos exclusivamente autorais. Para conhecer mais de mim, dividir sons e sabores poéticos, musicais, cinematográficos, e tantos outros cheiros mais além dos meus, venha tomar um expresso esparramado nas almofadas fofas do meu outro blog, o Abundante-mente. Te espero lá com as velas acesas.
5 de junho de 2010
Gota
Sai despenteada e apressada. Primeiro a filha na escola, depois o filho na natação. A Ioga fica pra depois. Volta pra casa, coloca a roupa na máquina, lava a louça da pia. Vassoura na sala, pano nos quartos, desinfetante no banheiro. Hora de buscar o filho na natação. Passa o uniforme, dá banho, comida, penteia os cabelos, deixa na escola com um beijo e um eu te amo. No ponto de ônibus lembra que precisa estender a roupa. Volta mais uma vez, pendura a roupa na corda, coloca as panelas na geladeira e, no portão - no exato momento em que as chaves caem no chão - percebe que está de chinelos. Verdes limão. Com a maquiagem já derretida entra de novo e coloca os saltos. Olha no relógio, já deveria estar na reunião. Desiste do ônibus, pega um táxi. Chega atrasada, dá boa tarde, escuta, organiza, propõe, resolve, indica. Fica aflita. É muita coisa e não há tempo. Delega, entrega e sai correndo. Hora de buscar os filhos na escola. Pega um ônibus, vai em pé. Hora do rush, engarrafamento. Abre um livro e vinte páginas depois desce na esquina. O salto quebra - estava demorando. Tira os sapatos, joga na lixeira e vai descalça. Pega os filhos, um beijo em cada um mais dois eu te amo, como foi o dia. Duas mochilas, mais bolsa de compras, laptop e pasta de couro. Quase não dá, mas tem que dar. Prepara a janta, ajuda no dever de casa, dá banho, conta uma história de dragões e princesas pra agradar os gregos e os troianos que dividem o mesmo quarto. Mais um beijo em cada um, dois eu te amo e um boa noite, durmam com os anjos. Apaga a luz. Respira. Descalça, caminha sem pressa até a cozinha. Abre a garrafa lentamente e escuta atenta o barulho do líquido estalando os cubos de gelo no fundo do copo. E aquela gota - não a mesma, outra - amarelada, reluzente, abrindo caminho pelo corpo transparente do vidro, caramujando em rolamentos circenses quase chegando ao rótulo avermelhado; aquela gota inteira, insistente, que magicamente a transporta para outro lugar. O lugar das maravilhas que, de tão mínimas, se tornam quase invisíveis aos olhos do tempo que escorre. E ela agradece por mais esse micro-poema que orvalha diante do seu rosto cansado. Porque enquanto a gota - aquela, não outra - estiver serpenteando garrafa abaixo e seu coração se mantiver atento à ela, sua vida já valeu a pena. E o amanhã será sempre outro dia.
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10 comentários:
Lindo texto!
A rotina, o cotidiano, não é nada fácil, mas se a poesia pairar sobre nossos dias, tudo fica mais belo e mais gostoso de levar!
Beijos, querida!
Ah, Sylvia!
e estas gotas, que vivem nos salvando?
(ao menos tentando)
Realmente intenso...
Belo e intenso!
abraço
"Não haverá borboletas se a vida não passar por longas e silenciosas metamorfoses."
Rubem Alves
Feliz Domingo e beijos meus...M@ria
Gostei muito daqui.
Ótimo texto.
Grande beijo.
O dia, pra mim, é sempre o que foi a madrugada. Às vezes os olhos só se abrem de lua a lua, mas nesgas de sol sempre invadem a janela. Eu vejo. Sinto. Te beijo!
"Toda rotina tem sua beleza"
bom sopros pra vc
xD
Delicado flor!!!
Um beijo
Sérá Sylvia
"É no orvalho de pequenas coisas que o coração encontra sua manhã e se sente refrescado."
Um beijo de sol com sonho. Para que eles não escorram por água abaixo.
Como eu disse no meu comentário do texto anterior, a porta se abriu novamente. Um pequeno universo e uma tão grande vida, um enorme e lindo personagem vc construiu em poucas linhas, amei. bjs
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