Este blog é uma reunião de textos exclusivamente autorais. Para conhecer mais de mim, dividir sons e sabores poéticos, musicais, cinematográficos, e tantos outros cheiros mais além dos meus, venha tomar um expresso esparramado nas almofadas fofas do meu outro blog, o Abundante-mente. Te espero lá com as velas acesas.

23 de março de 2010

Enganos

Rose sofre. Chega do trabalho esgotada e, magicamente, transforma vinte minutos em horas. Horas de limpar, cozinhar e se perfumar, até virar a mais linda das flores em tempos de seca. Quando Aderbal passa o cartão de ponto no centro da cidade, ela já está a caminho de casa - suando em bicas, até em dia de frio - porque ai dela se o ônibus lotado atrasar minutos, e a mesa não estiver posta sobre a mais alva das toalhas, herdada da sogra já ida. Ele chega invariavelmente irritado, e ela - de sorriso pronto - já lhe tira a camisa suada, ao mesmo tempo em que lhe enche uma das mãos com o destilado do dia. O boa noite, assim como o afago nos ombros, é sempre mão única. Ela oferece, ele grunhe. Só existem palavras não-ditas na sala, vindas do eco vazio da tevê preto e branco de antena quebrada. Um misto de frases de efeito e chiado agressivo, que Aderbal leva pro banho e arrasta descalço pra cama. Rose deita ao seu lado todos os dias sabendo que a ferida mal cicatrizada do ontem vai voltar a sangrar. Ele monta nela e lhe cospe impropérios, enquanto afunda os nós dos dedos no roxo claro das costelas, até ele escurecer e ficar quase bordô - pelo menos ali a camisa encobre os enganos. Em resposta ao dedo em riste do marido triste, Rose oferece sempre seu menor verso. E a si mesma, sua maior dor. A de nunca poder ser quem é. A de nunca conhecer o amor.

Sylvia Araujo

8 comentários:

Moisés de Carvalho disse...

ADOREI SEU BLOG !
COISA DE GENTE GRANDE...!

UM GRANDE BEIJO PRA VOCE !

Sylvia Araujo disse...

Obrigada pelo carinho, Poeta!

Beijo

Sylvio de Alencar. disse...

Tenho um apreço (que alimento em mim, e em quem leio). Valorizo ao extremo palavras escritas que refletem a alma de quem se coloca por entre sílabas, idéias ou sentimentos.
Já ouvi, d'O Mais Alto, que o sentimento é a linguagem de Deus. Claro, acredito; é óbvio.

Desenvolveu muito bem seu conto. Por entre começo, meio e fim, uma eternidade se pressente: ardida, raivosa, quieta, entre pessoas que oprimem e se oprimem.
Aderbal é o que é, uma cachoeira o espera mais adiante...
Rose, coitada...; ou não!!!!! (ela tem amor para dar). Mesmo sofrendo, está na direção certa; uma hora olhará por onde tem andado, quem sabe volte à trilha que lhe está reservada, ou, que a encontre.

Abrçs.

Alex disse...

lindo...realmente lindo.

Sylvia Araujo disse...

Sylvio, querido,
Muito obrigada pela leitura e comentário incrível. É bem isso, sentimentos que são dos outros, inteiros, e nos tomam, nos ardem, incomodam. Fico feliz que tenha conseguido passar as duas vias da opressão.
Um beijo pra você e volte sempre.


Alex,
Obrigada pelo carinho. Minha casa está sempre aberta. Venha sempre que quiser.
Beijo

Anônimo disse...

Sylvia... você não existe! coisa mais profunda e dolorida... lindo e emocionante.. obrigada menina!
Um beijo no seu coração!

:)

Cecília disse...

Sylvia... você não existe! coisa mais profunda e dolorida... lindo e emocionante.. obrigada menina!
Um beijo no seu coração!

:)

Cecília disse...

Sylvia... você não existe! coisa mais profunda e dolorida... lindo e emocionante.. obrigada menina!
Um beijo no seu coração!

:)