Este blog é uma reunião de textos exclusivamente autorais. Para conhecer mais de mim, dividir sons e sabores poéticos, musicais, cinematográficos, e tantos outros cheiros mais além dos meus, venha tomar um expresso esparramado nas almofadas fofas do meu outro blog, o Abundante-mente. Te espero lá com as velas acesas.

10 de junho de 2010

Technics

Você não tem ideia de quanta coisa eu superei, abdiquei, passei por cima, fingi que não vi. Dizem que o amor é assim: a gente abre mão de tudo pra tentar evitar o inevitável. Eu já nem me importava mais com as suas calcinhas penduradas na torneira do box, te juro. Nem com os absorventes usados enrolados na beira da pia, ou a escova de cabelo entupida de fios compridos e dourados. Achava até bonito - acredita? - aquele sol brilhando pra mim por entre as cerdas pretas e finas, todos os dias pela manhã. As camisetas surradas e as cuecas sem elástico que eu adorava usar - antes de você liquidá-las - já nem me lembrava mais. E a caixa de ferro do whisky 12 anos, que abrigava a minha coleção de botões oficiais? Tudo bem que tenham virado depósito de esmaltes multicoloridos e apetrechos de manicure que você nunca usou - minhas poucas coisas ficam bem em qualquer lugar. Não me incomodava nem um pouco que todos os cabides do meu armário estivessem ocupados pelos seus vestidos. De verdade. Até consegui compreender que eles precisavam mesmo de mais espaço, e as minhas calças gastas não. Esvaziei as prateleiras dos meus enfadonhos livros de Economia para que os seus sonetos pudessem respirar melhor, e deixei de lado os meus planos - todos eles - pra satisfazer os teus caprichos. Alisei com progressiva os teus cachos largos, te levei na primavera pra Veneza e te enchi de sapatos de toda sorte - apesar de você só ter dois pés, como qualquer outro mortal. Estava mesmo tudo bem, Cecília, até que você ultrapassou o inultrapassável. Eu sempre te disse que você podia tudo, e que eu te amava com todas as minhas forças - talvez tenha sido esse o meu maior erro - mas que nunca, jamais encostasse na minha vitrola. E você, num dos seus ataques histéricos de menina mimada que não ganhou de presente a boneca do comercial - olhando desafiadora no fundo dos meus olhos incrédulos - enfiou o dedão imundo na ponta delicada daquela agulha. Por isso, minha querida, não há mais o que lamentar: engula esse choro pobre, pegue as tuas coisas vazias e vá se envenenar com cds baratos em outro lugar. Porque o meu Baby 1983, aqui, nessa Technics original, você não escuta nunca mais.

Sylvia Araujo

6 comentários:

Ju Fuzetto disse...

Perfeito!!

Tem coisas que valem mais, muito mais...

beijos

Eva Cidrack disse...

Nossa, vce sempre me surpreende! Adorei todo o texto, principalmente o final. :)

mchinaski disse...

Ótimo! Grande!

"Eu me lembro do dia em que você entrou num bode...
Quebrou minha vitrola e minha coleção de Pink Floyd"

Beijos!

Juan Moravagine Carneiro disse...

A simplicidade de um olhar as vezes vale mais que muitas coisas...

Lindo escrito

abraço

Cynthia Lopes disse...

Sylvia, que mania eu tenho de colocar tudo no diminutivo! Já ia te charmar de Sylvinha. Acho que por conta de me sentir muito íntima daqueles que me tocam profundamente o coração. Sabe como eu me senti lendo o teu texto? Vou dizer, sabe quando vc entra na casa de um amigo querido? Pois é, me senti assim, vc abre a porta e eu dou de cara com aquela linda mesa posta para a ceia. Aí a gente vai para cozinha e enquanto se prepara a alquimia dos pratos, se toma um vinho e se joga conversa fora, contando os "causos". Amo seu blog e o seu jeito de escrever como quem abre as portas e janelas e nos deixa imaginar e antever. E tenho dito. bjs

Meg disse...

Sylvia,

A-do-rei!!!
Este teu texto me deliciou.
É que tem mais gente assim, sabia?

É um prazer te ler.

Beijooo