Este blog é uma reunião de textos exclusivamente autorais. Para conhecer mais de mim, dividir sons e sabores poéticos, musicais, cinematográficos, e tantos outros cheiros mais além dos meus, venha tomar um expresso esparramado nas almofadas fofas do meu outro blog, o Abundante-mente. Te espero lá com as velas acesas.

23 de março de 2011

Maneco

Maneco é nomecarinho, apelido de Manuel dos Santos Anjos, dado por sua mãe de frágil raiz, ceifada poucas horas depois do sofrido parto. Doente do coração, desde nova dividia o peito com o vento morno que lhe soprava dentro e lhe fazia palpitar em arritimia a bomba falha. O quanto de ar que faltava era o mesmo tanto de amor que brotava, enquanto acarinhava embevecida a barriga imensa, morena e redonda feito lua inteira. Trazia Maneco no ventre e, com ele, seu eterno continuar em botão de flor. Maria sabia e ninava a certeza da poesia que brotava dentro de si, cantarolando baixinho seus intocáveis amanhãs.

Sozinho, filho de pai desaparecido e mãe enterrada, neto de avós distantes e sobrinho de não se sabe quem, cresceu aos trancos e barrancos no meio de incontáveis sementes ocas que não germinaram. Na terra árida e endurecida - não se faz ideia como - vingou. Inexplicavelmente, manteve-se firme e ereto sobre os estreitos caniços, que até hoje exibem distraídos mais marcas que sua própria pele azeitonada - lembrança irrefutável de Mariamorena. Cópia quase perfeita de sua mãe - exceto pela ausência de alguns poucos dentes - Maneco, em osso e pele, minuto a minuto resistiu.

É março. Chove copiosamente em um Rio de Janeiro cinzento, e do asfalto esburacado brotam, a cada segundo, lagos amarronzados pontilhados das mais variadas imundícies metropolitanas. Entre guimbas baratas - carimbadas por carnudos lábioscarmim - e prisões plastificadas de espermatozoides malsucedidos, tem de tudo - uma variada gama dos dejetos humanos mais inúteis que se possa cogitar. Há quem pise em cheio nas fundas poças e maldiga dez gerações futuras mais seis passadas. Há quem simplesmente afunde e chore chuva. Maneco, aos vinte e poucos, em mangas de camisa e chinelos de dedo, sentindo as gotas beijarem seu corpo e cantarolarem no meio fio da vida, enternecidamente sorri.

Ele anda indiferente aos atropelos do centro da cidade apinhado de guarda-chuvas multicoloridos em pé de guerra. Eles se estapeiam, os mumificados ausentes donos dos para-águas. Ferem-se mutuamente com suas pontas afiadas cheias de ferrugem alaranjada, com seus cotovelos pontiagudos, com seus olhos vítreos - frios feito punhais. Maculam quem passa na medida exata com que arranham a si mesmos, todos os plúmbeos dias. Só ele vê. Com seus olhos de Midas - herdados de Mariamãe - só Maneco é capaz de ver a vidaviva que se pode viver, quando não se tem mais nada - coisa nenhuma a perder.

Sylvia Araujo

2 comentários:

Cynthia Lopes disse...

Ô coisa boa, gostosa mesmo de ler, Sylvia!
bjs

Nina Pilar disse...

é quando os murmúrios e sopros entre a dor e alegria valem à pena.
Muito bom, a poesia somos nós. De frente pro nosso espelho interior.

lindo

beijo