Caminhava, linda e delicada. Um passo após o outro - a ponta de um dos pés descalços, tocando cuidadosa o calcanhar seguro. Os braços abertos mantinham em equilíbrio o corpo leve e franzino, e davam a ela um quê de bailarina manca. Ela vibrava nos trilhos. E sorria inteira em sua falta de dentes, era pura inocência, menina. O sol rasgava o azul, e seus fiapos brilhantes atravessavam a seda dourada que voava ao vento. Um fio da trança quase solta beijava a flor meio murcha presa atrás da orelha pequena. Seus olhos seguiam o horizonte, como se lá estivesse guardado o maior de todos os tesouros. Ela comia o futuro com a avidez dos que carregam em si a certeza de nunca terem certeza de nada. O trem, suspirando fumaça em seu ritmo marcado pela rotina dos dias, vinha operário. A menina então, se afastou da rota e deitou no chão - os olhos cinzazulados cerrados, a respiração suspensa - sentindo subir pelas costas cada vagão, cada roda. Tocava toda pedrinha pontuda com a extremidade dos dedos e as levantava com um arco do fino braço, deixando cair uma a uma as notas da sua melodia. Era o trem, era ela, era a incerteza e a beleza do improviso em forma de criança ensolarada. Era a música dos dias, do cinza, do morto, e daquele amarelo brotado em tranças, escapulindo sorrisos pela janela da boca dela. Ela era casa aberta, sinfonia escorrendo pelas portas brancas. A locomotiva, altiva e certa em seu caminho indesviável, sem olhar pra trás, sorriu.
Sylvia Araujo
4 comentários:
Delicadeza é uma virtude que costumo encontrar por aqui. Quem me dera absorver um pouco de tanta beleza para destilar em meus escritos...
parabéns!
Que lindo, Sylvia! Mesmo cheio de delicadeza, como disse a pessoa acima. Desde as caracteríticas até os sentimentos da menina.
Me lembrou uma parte da história do Grande Mentecapto, em que Viramundo quando criança fez o trem parar, rs!
Um lindo caminho o desta bornoleta.
bjs
Insana
Minha querida
Um texto lindo e delicado como as asas de uma borboleta. amei.
beijinhos com carinho
Sonhadora
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