Este blog é uma reunião de textos exclusivamente autorais. Para conhecer mais de mim, dividir sons e sabores poéticos, musicais, cinematográficos, e tantos outros cheiros mais além dos meus, venha tomar um expresso esparramado nas almofadas fofas do meu outro blog, o Abundante-mente. Te espero lá com as velas acesas.

28 de julho de 2010

Ainda bem

Amanheceu verde - musgo fértil em ventre de pássaro brotado em horizonte. Antes de abrirem as janelas, lhe descortinou rebelde um sol redondo pelos olhos negros - os raios quentes lhe atravessando íntimos os poros abertos. Sorriu bem dentro, em céu da boca estrelado e dentes pequerruchos de marfim - as covinhas afoitas se debruçando enamoradas no parapeito das velhas rugas - e lentamente amareleceu. A brisa morna fez dançar de leve as cores vivas no varal, e veio delas em magia um cheiro adocicado e primaveril de campo em flor. Um gosto exuberante de tomilho lhe tomou de assalto a ponta da língua - sabor de lembrança que abraça apertado e não deixa partir. Permitiu então que brotasse em pura nascente uma lágrima bonita - perfeita em sua transparência arredondada - que lhe atravessou solene o rosto estreito, como quem mergulha de corpo inteiro em mar aberto, como quem assopra com toda a força dos pulmões um dente de leão - só pra ver a sua alma voar. Dia pleno, pediu ao marido-encantado que lhe escovasse com energia os brancos fios, pra sentir de olhos fechados mais uma vez o prazer do couro cabeludo se esparramando em cascata pelos lençóis trocados - a maciez de algodão a lhe afagar delicada os ombros cansados. Ao longe, uma melodia suave serenava - flautas transversas e violinos em dueto, conversavam poesia sobre rosas-chá. Falavam emocionados do brilho das estrelas e do coaxar dos sapos, como quem fala de champagne e caviar - ela embevecida, ouvia. Noite alta, pensando - o ar faltando e o amor sobrando no peito murcho - achou um bocado estranho tanta vida lhe assoberbar assim os minutos contados, fazendo toda essa batucada irrefreada no coração exausto. Então, em sussurro abraçado ao último suspiro - mastigando com calma todas as vezes em que pisou descalça a grama e dançou em par na chuva - agradeceu baixinho: ainda bem que em mim tudo sempre foi assim. E voou.


Sylvia Araujo

10 comentários:

AC disse...

Todos temos um ciclo a cumprir, mas nem sempre estamos preparados para o seu término.
Quando alguém levanta voo com a satisfação de saber que "pisou descalça a grama e dançou em par na chuva", sentimos que a vida foi vivida por inteiro e houve dignidade no cumprimento do ciclo. Ainda bem.

Beijo

Fabi Anselmo disse...

Ai, quanta ternura!
O verbo usado, foi perfeito: voar!
Lindo, lindo, lindo!!
Me emocionei...


bjus

Wolber Campos disse...

Sylvia, que belo texto!
Daqueles em que podemos mergulhar nas palavras e viajar com a história. Semelhante a ouvir um Lucy in the Sky with diamonts, claro, com o coração, além dos ouvidos.
Foi assim que li esse texto, não apenas com os olhos.

Parabéns! E um abraço!

A.S. disse...

Belo texto Syilvia...

Todos temos asas... porém apenas alguns tentam a ousadia do voo!

BeijoSSS
AL

Unknown disse...

"ainda bem que em mim tudo sempre foi assim." como queria poder RECITAR esse frase um dia...

ADOREI O BLOG VISSE...xerooo

Juan Moravagine Carneiro disse...

Belo texto

beijos

Cynthia Lopes disse...

Oi minha flor, de palavras soltas, que voam pelas nossas cabeças, libertárias. Tanto tempo sem te ler, aliás, tanto tempo sem ver muita gente, meio introspectiva, um tanto solitária, eu volto a voar por aqui. Feliz, porque, sei que aqui acho mais (muito mais!), do que o comum e o verossímil. Acho ouro, neste pote enorme de vc. bjs e lindo, linda prosa Sylvia.

lídia martins disse...

Eu sabia que você entendia de nuvens. E você não vai ter outro remédio, senão o de concordar!

Besos de luz menina voadora

Insana disse...

Muito meigo

bjs
Insana

B. disse...

Abro a janela e pá !
Um sopro de luz.

Saio um pouco tonta, mas com um certeza: és Deusa da linguagem e seduz.

Paz