Este blog é uma reunião de textos exclusivamente autorais. Para conhecer mais de mim, dividir sons e sabores poéticos, musicais, cinematográficos, e tantos outros cheiros mais além dos meus, venha tomar um expresso esparramado nas almofadas fofas do meu outro blog, o Abundante-mente. Te espero lá com as velas acesas.

28 de junho de 2010

Indistinguível

Inerte. As mãos negras e disformes boiando flácidas em sangue frio. Sentia um fiapo de vida latejar no pulso esquerdo partido, e rosnava por dentro. Não era dor, mas ódio o fio tênue que mantinha seu coração cansado batucando frenético dentro do peito. Noite fria em beco escuro não é tempo de ficar estirado no chão feito dejeto. Ainda assim, lá estava ele abraçado ao meio fio, aos restos de madrugada pútrida e às ratazanas famintas - indistinguíveis. Sentia no rosto um constante fisgar, e do olhar em horizonte fugia apenas um vislumbrar leitoso de imagens retorcidas. Ao fundo, um poste apagava e acendia - ritmado. Ou seria uma lanterna? Ou seus tantos desmaiares? Tentou mover as pernas e não conseguiu. Em pânico, imaginou o revirar do pescoço, mas eram apenas os globos girando nas órbitas e a palavra queimando feito incêndio na garganta. Nem um som se ouvia, além das gotas gordas que escorriam dos seus olhos vítreos e pingavam quentes no chão de concreto. Chovia através das pálbebras inchadas, um gosto salgado fazendo arder os cortes profundos nos lábios. E ele ali, inerte, implorando emudecido ajuda ou morte. Como num filme, Margareth lhe saltou à frente em batom vermelho e seios fartos. Dançava linda, enevoada pela fumaça da cigarrilha ao som de um blues qualquer - olhos fechados. Ela sempre fazia isso enquanto ele apertava o espartilho ou afivelava o salto. E lhe enxugava as lágrimas com lenço de seda, quando ser mulher aprisionada em corpo de homem virava fardo pesado demais e lhe anoitecia. Margareth era feliz com o que se transformara e talvez isso a tenha salvado da solidão. Enquanto ele, mazela pura, expurgava sozinho naquela sarjeta imunda, o veneno amargo que o consumia. Já não sofria. Com um beijo doce da única e fiel amiga, evaporou enfim em uma paz lilás.


Sylvia Araujo




PS: Tomei emprestado o lilás da evaporação bonita do Marcelo Novaes, no incrível Prosas Poéticas. O link logo aí em cima, de mãos dadas com a paz.

3 comentários:

Rafael Castellar das Neves disse...

Implorar ajuda ou morte é do caramba! Terrível e nada incomum...

Muito bom!!

[]s

Juan Moravagine Carneiro disse...

Agradecido pelas visitas ao Rembrandt

abraço

aluisio martinns disse...

Quero minha cereja!!! texto intenso, do jeito que gosto que se derrama pelas bordas, inunda tudo em mim, abunda o mundo que anda raso de calores e amores assim.
Lindo