Este blog é uma reunião de textos exclusivamente autorais. Para conhecer mais de mim, dividir sons e sabores poéticos, musicais, cinematográficos, e tantos outros cheiros mais além dos meus, venha tomar um expresso esparramado nas almofadas fofas do meu outro blog, o Abundante-mente. Te espero lá com as velas acesas.

29 de janeiro de 2010

Hoje me exaurem os excessos.
Sylvia Araujo

27 de janeiro de 2010

Sabedoria

Ele não decifra letras quando se agrupam, desde que nasceu. Me disse um dia - nos seus trinta e poucos - que sempre venerou a vírgula, mesmo sem poder chamá-la. Falou, com propriedade, que o ponto inspira a sabe-tudo - por isso lhe torce o nariz. O que não remete ao infinito, não quer mais pra si - só leva agora consigo o que tem cheiro de mar.
Quando lhe apontei as reticências, passou a vagar pelo mundo pintando três pontos em todo lugar.
Esse agora é o seu nome.
Esse se fez o seu lar.

Sylvia Araujo

22 de janeiro de 2010

Almíscar

Numa noite quente de um Rio de Janeiro abafado e úmido, chegou como sopro de brisa fresca. Trajava roupas fluídas, muito claras - quase ofuscantes. O tecido transparente bailava no meio da pista lotada e ditava o ritmo da música. Aos poucos, seu magnetismo atraía os olhares incrédulos. Não era possível enxergar seu rosto, mas era fácil decifrar sua expressão. Ela sorria.
Com os braços abertos girando em torno do tronco - em movimentos de ondas - espalhava um perfume almiscarado, criando uma atmosfera em suspenso. Os corações pulsavam em um mesmo compasso - o que seus pés descalços marcavam no chão. Não se viam seus olhos, mas todos sabiam que estavam cerrados, ávidos pela energia que jorrava de dentro. Um a um - deixando de lado suas falsas histórias - os sorrisos foram nascendo, os cílios fechando, os braços se abrindo e os corpos rodopiando...
No auge do transe ela se foi, evaporando sutil em seu corpo de vento. Seus respingos de vida - cheirando a almíscar - pairavam agora entre as vagas que brotavam dos braços ondulantes, e beijavam cada lágrima liberta que escorria.
Ela sorria.
Mas dessa vez, de olhos e alma escancarados.

Sylvia Araujo

Apreço

Quando as ideias escapolem às palavras,
Emudeço.
Recém inauguro um mundo seguro,
Sem tropeços traduzíveis.
As topadas que dou hoje
Não têm letras.
Nem som - nem cor -
Nem tampouco textura de dor.
Elas têm é cheiro de além -
Além-mar-azul-bem-doce-tenro,
Sem frase feitas ou efeitos crus.
Quando as palavras escapolem às ideias,
Não mais pereço.
Vivencio o apreço de estar enfim
Em mim.

Sylvia Araujo

Cores de Almodóvar

Mesmo que Abraços Partidos, recém saído do forno, nos imprima as sensações controversas de que talvez tenha passado demais do ponto, ou ficado um pouco cru por dentro, não tem como dizer que o diretor espanhol perdeu a mão. A câmera pelos seus olhos faz mágica. Sempre. E mesmo ainda que não tenha me rasgado de amores por essa película - que não é nem de longe sua melhor direção - as cores de Almodóvar não largam minhas retinas, muitas horas depois de ter saído da sala de projeção. Seu olhar ousado e absurdamente criativo e detalhista tornam imortais cenas como a imagem refletida na íris de Lena, a lágrima escorrendo pelo tomate numa cena de Garotas e Malas, a praia lotada de pipas depois da recém cegueira de Mateo, as confissões de Judith vistas por fora da janela do bar, dentre tantos outros mimos à nossa alma.
Pedro Almodóvar é extraordinariamente genial. E eu aguardo sempre ansiosa sua próxima efervecente aparição.

Sylvia Araujo